TEMAS AVANÇADOS - A nova teoria da capacidade civil Flashcards
A Lei Brasileira de Inclusão, o Estatuto da Pessoa com Deficiência, é frequentemente apontado como marco na redefinição do conceito de capacidade civil em nosso ordenamento. O professor Paulo Lobo, contudo, diz que esse remodelamento é mais antigo, que essa reconstrução começou, na verdade, em 2009. O que aconteceu em tal data?
Convenção de Nova Iorque
O conceito de capacidade no Brasil, ele foi modificado a partir da Convenção de Nova York, que ingressou em nosso ordenamento com força de norma constitucional. Isso ocorreu lá pelos idos de 2008/2009 e pouca gente percebeu isso.
Foi somente com a Lei Brasileira de Inclusão, o Estatuto da Pessoa com Deficiência é que essa mudança se tornou mais perceptível. Ainda hoje, acredita nisso, ainda hoje existem várias pessoas formadas que não tem noção do que aconteceu com o conceito de capacidade civil.
Qual é o conceito legal de pessoa com deficiência?
Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.
A deficiência geral incapacidade civil?
No texto original do Código Civil
Mas a partir do Estatuto do Deficiente, não mais
Nós nos habituamos a dizer que deficiência gera incapacidade civil. Porque era assim. O Código Civil (CC) de 1916 e o de 2002, na sua redação original, diziam isso (“a pessoa com enfermidade mental, a pessoa excepcional é incapaz”). Todavia, a Convenção de Nova York, que ingressou em nosso ordenamento com força de norma constitucional, e a Lei Brasileira de Inclusão (Estatuto da Pessoa com Deficiência) reconstruíram o conceito de capacidade no Brasil para não mais considerar deficiência como causa de incapacidade civil.
Art. 12 da Convenção de Nova York, item 2: os Estados Partes reconhecerão que as pessoas com deficiência gozam de capacidade legal em igualdade de condições com as demais pessoas em todos os aspectos da vida.
E a Lei Brasileira de Inclusão, nessa vereda, diz: art. 6º a deficiência não afeta a plena capacidade civil da pessoa
A pessoa deficiente que, para atuar na vida social, se valha de um curador ou de um apoiador, é civilmente capaz?
De acordo com a norma constitucional da Convenção de Nova York e de acordo com as normas do Estatuto da Pessoa com Deficiência. Está dito aí: toda pessoa, deficiente ou não, é legalmente capaz, ainda que para atuar na vida social se valha de um curador ou de um apoiador.
Em outras palavras, de acordo com a norma da Convenção de Nova York e com o Estatuto da Pessoa com Deficiência, deficiência não é mais causa de incapacidade civil.
Antes da Convenção de Nova Iorque e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, o que a pessoa com deficiência mental ou intelectual (como o portador de uma síndrome de Down) necessitava fazer para comprar ou vender uma casa? O que mudou?
A pessoa com deficiência (estou falando, claro, da deficiência mental e intelectual), elas eram colocadas genericamente no rótulo de incapazes e conduzidas genericamente a um procedimento de interdição. Era designado um curador, por meio da interdição, para representar pessoa com deficiência em todos os atos da sua vida, quando, em verdade, essa pessoa, que tinha capacidade de autodeterminação, não precisava de um curador para todos os atos da sua vida.
Mas não tinha jeito, a pessoa com deficiência era rotulada de incapaz, conduzida ao procedimento de interdição que, em quase todas as vezes, resultava na designação de um curador com poderes gerais para todos os atos da vida civil.
Atualmente, ela pode nominar apoiadores, que o auxiliarão para aquele ato específico da vida. Bem diferente.
A partir da Convenção de Nova Iorque e do Estatuto da Pessoa com Deficiência, a deficiência deixou de ser causa de incapacidade civil. Neste contexto, pergunta-se: a ação de interdição ainda existe, depois dessa alteração de paradigma?
O procedimento de interdição não acabou, o que acabou foi aquele modelo de interdição antigo, que interditava pessoa com deficiência, incapaz nomeando-lhe um curador que, na prática, tinha poderes genéricos. Isso acabou, mas o procedimento de interdição, ou melhor, de curatela, continua existindo, mas esse procedimento de interdição ou curatela não resulta mais numa declaração de incapacidade, negativo. O juiz designa um curador para uma pessoa deficiente que é legalmente capaz.
A curatela, que continua existindo, se tornou a partir do Estatuto uma medida extraordinária. Antigamente, as pessoas com deficiência eram quase que todas empurradas para o curatela. Hoje não. É norma legal. O juiz só designa um curador para pessoa com deficiência quando for absolutamente necessário.
A Lei nº 9.099/1995, que disciplina os Juizados Especiais, estabelece, lá pelo art. 8º, que não pode postular no Juizado o incapaz. Uma pessoa com Down compra um aparelho celular, veio com um defeito, ele é consumidor. Ele vai ao Juizado da sua cidade e faz uma queixa. Ele pode?
Pode, sim. Porque a partir do momento em que a Convenção de Nova York e o Estatuto da Pessoa com Deficiência reconstruíram o conceito de capacidade para dizer que, toda pessoa, deficiente ou não, é legalmente capaz, deficiência não é mais causa de incapacidade civil.
Agora, é claro, se a deficiência for como naquele hipótese, daquele senhor cujo filho tem paralisia cerebral, em que ele é curador, em que ele é representante, nós sabemos que a Lei do Juizado, em outros dispositivos, estabelece que no Juizado (você sabe) a pessoa física tem que ir pessoalmente para audiência. Então, na hipótese da pessoa com paralisia cerebral, como ela não poderá comparecer pessoalmente para interagir numa audiência, aí, neste caso, a demanda ajuizada por ela, representada pelo pai, tramitará numa Vara Cível.
Mas não porque ela é uma pessoa incapaz, não. Mas porque ela não pode pessoalmente estar no Juizado, interagir na audiência.
Por que o ordenamento se preocupa com o pródigo? Se ele quer gastar o patrimônio dele descontroladamente, não seria problema dele? Por que o ordenamento prevê que o pródigo será interditado, designando-lhe um curador para assisti-lo na prática de atos patrimoniais?
Teoria do patrimônio mínimo
Porque hoje existe uma percepção, à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, de que aquilo que repercute na sua vida interfere na minha. Então, a proteção do pródigo, a consideração dele como relativamente incapaz tem fundamento na chamada teoria do estatuto jurídico do patrimônio mínimo, que foi desenvolvida pelo professor Luiz Edson Fachin: à luz do princípio da dignidade humana, as normas civis devem sempre resguardar um mínimo de patrimônio para que cada pessoa tenha vida digna.
Ao redigir o art. 4º do CC, o legislador do Estatuto da Pessoa com Deficiência manteve, no inciso III, do art. 4º, a seguinte referência: são relativamente incapazes as pessoas que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade. Parte da doutrina defende que foi um equívoco por parte do legislador. Por que?
Porque esse inciso não tem nada a ver com pessoa com deficiência. O exemplo que a doutrina sempre deu era o seguinte: o cidadão sofreu um acidente de carro e está em coma no hospital. Por que ele é incapaz? Porque há uma causa, temporária ou permanente (o estado de coma), que impede ele de expressar vontade.
A lógica é que essa pessoa fosse considerada o quê? Absolutamente incapaz. Está no hospital, na cama, em coma. Mas, o legislador não fez isso. Pegou essa pessoa que está em coma no hospital e considerou relativamente incapaz. Pior do que isso, há professores sustentando que essa previsão do inciso III, do art. 4º, da atual redação do Código, é uma brecha para que pessoas com deficiência continuem a ser consideradas incapazes.
De acordo com Pablo Stolze, encaixar aqui a pessoa com deficiência não faz sentido. Primeiro porque não há referência alguma a deficiência. Segundo porque esse inciso é antigo (só foi deslocado) e jamais foi interpretado como referindo-se ao deficiente. Terceiro porque, tudo não bastasse, é uma interpretação inconstitucional, em rota de colisão contra a Convenção de Nova York, que ingressou em nosso ordenamento com força de norma constitucional. E você estaria violando frontalmente o Estatuto da Pessoa com Deficiência. Frontalmente.