TEMAS AVANÇADOS - Ilicitude Flashcards

1
Q

O que é a tipicidade conglobante, defendida por Zaffaroni?

A

Zaffaroni pegou a tipicidade material e a ela acrescentou um elemento: a antinormatividade. Conglobar é englobar. Tipicidade conglobante é uma tipicidade, é um juízo de valor sobre a tipicidade que englobe todos os ramos do ordenamento jurídico, ou seja, que não fica adstrito ao Direito Penal.

E, aí, é que Zaffaroni vem diz o seguinte: olha, se a conduta considerada atípica pelo Direito Penal, no caso concreto, for considerada obrigatória ou for fomentada por outro ramo do ordenamento jurídico, então essa conduta será normativa e, portanto, não deve ser típica, porque, para o Direito Penal, só deve ser típica se a conduta for antinormativa: aquela conduta que não é considerada obrigatória ou fomentada por outro ramo do ordenamento jurídico.

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2
Q

O carrasco que, no cumprimento de seu trabalho, mata o condenado, pratica conduta típica?

A

Pela tipicidade conglobante, não

Pela tipicidade material, sim

Em nenhum dos sistemas ele vai ser punido. Apesar de materialmente típica, a conduta não é ilícita: o estrito cumprimento de um dever legal é uma excludente de ilicitude. Zaffaroni, contudo, defende que sequer deveria ser típica. Por isso, cunhou o conceito de antinormatividade: se a conduta é exigida pelo direito como um todo, não pode ser típica.

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3
Q

Por que essa teoria de Zaffaroni, da tipicidade conglobante, é rejeitada pela maioria da doutrina?

A

No Brasil, a doutrina de Zaffaroni tem uma repercussão imensa, mas, por exemplo, ninguém fala dela na Europa, e ela é muito pouco acolhida nos outros países da América do Sul. E até no Brasil não é acolhido pela maioria por quê?

O calcanhar de Aquiles da teoria de Zaffaroni é que ela esvazia totalmente o estrito cumprimento de um dever legal. Porque aquilo que seria estrito cumprimento de um dever legal passa, então, a ser a ideia de normatividade. Então, é como se Zaffaroni retirasse o estrito cumprimento de um dever legal, de lá da ilicitude e jogasse dentro da tipicidade com outro nome, e por isso essa teoria é tão criticada.

Ou seja, é como se ele tivesse falando de uma coisa antiga, dando o nome novo e deslocando da ilicitude para tipicidade.

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4
Q

Grande parte da doutrina entende a expressão antijuridicidade como sinônima de ilicitude. Há, contudo, que critique o uso daquela. Por que?

A

Por conta de um argumento que foi utilizado por alguns autores, exemplos de Bidim, lá na primeira metade do Séc. XX, que dizia que, na verdade, o crime não é antijurídico, crime é ilícito. Por que ele não é antijurídico? Porque o antijurídico é aquilo que é contrário ao direito e o crime não seria contrário ao direito. O crime seria, em verdade, uma construção do direito, o crime seria uma construção jurídica. Então, ele não poderia, para essa perspectiva, ser antijurídico; não pode ser antijurídico já que ele é, por essência, jurídico. O argumento seria esse.

O art. 23 do CP previu as excludentes de ilicitude. Ele utiliza a expressão ilicitude. Então quando você utiliza a expressão licitude, não há risco de você, de algum modo, cometer equívoco, porque é a expressão utilizada pela nossa doutrina, ou seja, você pode até encontrar pessoas que entendam que a expressão antijuridicidade não é adequada, mas não dá para dizer que a expressão ilicitude não é adequada diante do nosso ordenamento jurídico.

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5
Q

É comum falar que o crime é fato típico, ilícito e culpável. Utilizar os adjetivos “ilícito” e “culpável” no lugar dos substantivos “ilicitude” e “culpabilidade”. Todavia, é preciso tomar um cuidado ao fazê-lo, pois há quem critique o uso de tais adjetivos para qualificar o crime. Por que?

A

Culpável é característica do agente

E não da conduta (ao contrário da ilicitude e da tipicidade)

A tipicidade é um juízo de valor sobre o fato, então realmente é um fato típico. A ilicitude também é um juízo de valor sobre o fato, de modo que também eu falo em fato ilícito. Só que a culpabilidade é o juízo de valor sobre a pessoa. Então, na verdade, se a gente for bastante criterioso, o correto, tecnicamente, seria falarmos em fato típico e ilícito com agente culpável.

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6
Q

Cite dois sinônimos para a expressão “excludente de ilicitude” e outros dois para a expressão “excludente de culpabilidade”.

A

As EXCLUDENTES DE ILICITUDE são chamadas de justificantes ou causas de justificação. É interessante a gente conhecer essas expressões que são menos utilizadas, porque quando são utilizadas também pegam muita gente no contrapé.

As EXCLUDENTES DA CULPABILIDADE são chamadas de exculpantes ou dirimentes. Então, dirimentes é uma expressão para designar as excludentes de culpabilidade. Eu não posso falar, por exemplo, em dirimente de licitude. Da mesma forma que eu não posso falar em justificante da culpabilidade.

Dirimente é para exclusão da culpabilidade; justificante é excludente de ilicitude. Então, a gente tem que tomar cuidado com essas expressões.

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7
Q

As justificantes se dividem em justificantes gerais (genéricas) e especiais (específicas). Qual a diferença essencial entre elas?

A

As GERAIS são aquelas que vão se aplicar aos crimes de um modo geral e não apenas para um ou outro crime especificamente.

As justificantes ESPECIAIS são aquelas que dizem respeito a determinados crimes, especificamente. Então, são excludentes de ilicitude que não estão na Parte Geral do CP. São excludentes de ilicitude que podem vir ali em determinado tipo penal.

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8
Q

Então, imagine que alguém está no alto de um prédio, está ali uma balaustrada, na iminência de se atirar e se arrebentar no chão, quer acabar com a própria vida. E uma outra pessoa, percebendo aquela situação e na tentativa de salvar a vida daquele que quer, em um ato de desespero, acabar com a própria vida, esse alguém chega sorrateiramente por detrás do pretenso suicida, sem que o suicida perceba a sua presença. E esse alguém, então, puxa o suicida e retira-o do frontispício, da balaustrada, puxando-o para dentro, e esse suicida, ele cai no chão, se arrebenta, sofre algumas lesões. Ele cometeu o crime de constrangimento ilegal?

A

A rigor, o sujeito que puxou o suicida, em tese, ele poderia responder - se eu não tivesse uma previsão expressa na lei -, ele comete pelo menos o fato típico do constrangimento ilegal. Porque ele emprega violência para obrigar o sujeito a fazer aquilo que a lei não proibiu, já que não existe o crime de suicídio.

No entanto, claro que, mesmo que eu não tivesse uma previsão expressa no art. 146, também me parece bastante evidente que seria um caso de estado de necessidade, porque ele violenta a integridade física da vítima para impedir que aquela vítima sacrifique a própria vida. Só que, nesse caso, não é necessário recorrer à excludente geral do estado de necessidade, pois o próprio art. 146 do CP diz que não já crime de constrangimento ilegal em uma situação como essa, em que o sujeito intervém para salvar alguém da prática suicida. É uma excludente de ilicitude específica para o constrangimento ilegal.

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9
Q

Quais são as quatro excludentes legais da ilicitude?

A

O art. 23 do CP, no seu inciso I, nos traz o estado de necessidade; o mesmo art. 23, no inciso II, nos traz a legítima defesa; no inciso III, nós temos o estrito cumprimento de um dever legal e também o exercício regular de direito. As duas últimas excludentes estão no mesmo inciso, é inciso III.

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10
Q

O artigo 23 do CP diz que não há crime quando o agente pratica o fato em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito. O Código Penal define ou explicita o que é cada uma dessas hipóteses de exclusão de ilicitude?

A

O Código Penal define, nos dois artigos seguintes, o que é o estado de necessidade e a legítima defesa, mas não define o que são o estrito cumprimento de dever legal ou, ainda, o exercício regular de direito.

Quem define, quem delimita o âmbito de abrangência do estrito cumprimento de um dever legal e do exercício regular direito é a doutrina e a jurisprudência.

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11
Q

Além das justificantes gerais previstas no artigo 23 do CP, há uma causa supralegal de exclusão da ilicitude, admitida pacificamente pela doutrina e jurisprudência. Qual?

A

Consentimento do ofendido

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12
Q

Antigamente se falava não somente em ilicitude (como hoje), dividindo-se o conceito em ilicitude formal e material. O que era cada qual, e por que atualmente não se faz mais esta divisão?

A

ILICITUDE FORMAL é aquilo que a gente chama de ilicitude hoje: a contrariedade do fato típico à ordem legal. Isso é ilicitude que outrora era chamado de licitude no aspecto formal.

ILICITUDE MATERIAL (que hoje quase ninguém mais fala) era a danosidade social provocada com a conduta. O que acabava reverberando na violação do bem jurídico. É por isso que hoje não se falar mais nisso, porque desde que se desenvolveu a ideia da tipicidade material, aquilo que era ilicitude material ficou sem sentido. Porque o que é ilicitude material hoje é analisado na tipicidade material. É por isso que hoje a gente não fala mais nesse desdobramento da ilicitude, a gente fala na unicidade da ilicitude.

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13
Q

O que é o chamado excesso punível? Ele pode ser culposo, doloso ou ambos? Qual a consequência do excesso?

A

Muita gente, de forma equivocada, confunde a ideia de excesso com a legítima defesa. Todavia, é possível falar em excesso punível - a título de dolo ou de culpa - em qualquer excludente de ilicitude. O CP ao disciplinar o excesso punível, diz que “o agente, em qualquer das hipóteses deste artigo, responderá pelo excesso doloso ou culposo”.

Então, a gente já tem aqui uma questão bem interessante, questão bem interessante para a gente saber o seguinte: o excesso pode ser doloso ou culposo. Então, eu posso ter um excesso intencional ou um excesso não intencional.

O excesso faz com que você responda pelo resultado.

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14
Q

Existem algumas teorias para explicar o estado de necessidade. Teorias que vão dizer a que se destina o estado de necessidade, para que se compreenda como é que o estado de necessidade atua em relação à teoria do crime. Quais são as duas teorias mais importantes, o que diz cada uma delas e qual é a adotada pelo Código Penal?

A

Teoria unitária e diferenciadora (ou diferenciada)

O Código Penal adota a teoria unitária

Para TEORIA UNITÁRIA, o estado de necessidade é uma justificante, significando dizer que para a teoria unitária, o estado de necessidade exclui a ilicitude.

Já a TEORIA DIFERENCIADORA distingue duas situações, de modo que o estado de necessidade pode ser justificante, ou, a depender do caso, exculpante. Em outras palavras, pode ser excludente de ilicitude ou pode ser uma excludente de culpabilidade, a depender do caso.

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15
Q

Em se tratando do estado de necessidade, há duas grandes teorias, a saber, a teoria unitária e a diferenciadora. Esta última foi acolhida no Brasil?

A

Embora o Código Penal tenha adotado a teoria unitária (pela qual o estado de necessidade é sempre uma justificante, e jamais uma exculpante), a teoria diferenciadora foi adotada em nosso ordenamento, especificamente no tocante ao Processo Penal Militar.

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16
Q

Quanto ao estado de necessidade, as duas grandes teorias são a unitária (adotada pelo CP) e a diferenciadora (adotada pelo CPM). Há, contudo, outras teorias de menor importância, mas que é relevante ter ciência de sua existência, como a teoria da equidade e a teoria da escola positiva italiana. O que diz cada qual?

A

A TEORIA DA EQUIDADE é lastreada na obra de Kant (Kant morreu muito antes dela ser cunhada; ele, portanto, não seu autor: a teoria foi apenas inspirada pela obra de Kant). Para ela, quando você tem estado de necessidade, não se exclui nem a ilicitude e nem a culpabilidade, mas, por conta de uma questão de equidade, afastaríamos a punibilidade da conduta.

A TEORIA POSITIVA, que é fruto da escola positivista italiana, é inspirada no pensamento de Enrico Ferri. Os positivistas não acreditam no livre arbítrio, então, para eles o fundamento da punição não é a liberdade, mas a temibilidade (a periculosidade). Os positivistas têm um raciocínio parecido com a teoria da equidade, porque, para os eles, o estado de necessidade não exclui nem a ilicitude e nem a culpabilidade. Quando a pessoa está em estado de necessidade não demonstra temibilidade e, por isso, não deveria ser punida.

A duas teorias são parecidas no sentido de que para elas, esse instituto do estado de necessidade não exclui o crime. Então, a gente mantém os três elementos do crime: o fato típico, a ilicitude e a culpabilidade. Também, para as duas, nós não teríamos a punibilidade, que não integra o crime. A diferença é que para teoria da equidade, a gente não deveria punir aquele que está em estado de necessidade, por uma questão de equidade; para a teoria positivista, a gente não deveria punir quem age em estado de necessidade, porque ele não apresenta temibilidade - temibilidade é a ideia parecida de periculosidade.

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17
Q

É possível aplicar a justificante do estado de necessidade quando há violência ou grave ameaça?

A

A violência ou grave ameaça afasta a possibilidade de insignificância, mas não o estado de necessidade. No estado de necessidade, você pode matar para não morrer, quanto mais roubar para não morrer ou roubar para alimentar uma criança que está morrendo de fome.

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18
Q

O que diferencia o estado de necessidade da legítima defesa?

A

Art. 24 - Considera-se estado de necessidade quem pratica o fato para salvar de perigo atual, que não provocou por sua vontade, nem podia de outro modo evitar, direito próprio ou alheio, cujo sacrifício, nas circunstâncias, não era razoável exigir-se.

O “salvar de perigo atual” é o que distingue o estado de necessidade da legítima defesa, porque no estado de necessidade nós vamos atuar para salvar o bem jurídico de uma situação de perigo, ao passo que na legítima defesa, nós vamos atuar para repelir uma agressão.

A agressão, que será repelida na legítima defesa, consiste em uma violação voluntária a um determinado bem jurídico: é uma conduta humana. Já quando na situação de perigo eu posso vislumbrar algumas possibilidades, e nenhuma dessas possibilidades vai amparar essa violação a que eu me referia, essa conduta humana voluntariamente dirigida à violação ao bem jurídico.

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19
Q

O CP estabelece, em seu artigo 24, que “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato [fato típico] para salvar de perigo […]”. O examinador, contudo, adora perguntar qual qualificação desse perigo (que, de propósito, omiti na transcrição). É apenas o perigo atual, ou o perigo atual ou iminente? Por que essa confusão ocorre?

A

Perigo atual

A distinção é importante porque na agressão (que leva à justificante da legítima defesa), considera-se tanto a agressão atual, como a iminente. O perigo (que leva à justificante do estado de necessidade), apenas o perigo atual.

A doutrina concorda com tal dicção da lei. Para a doutrina majoritária, é perigo atual mesmo, não é perigo atual ou iminente. Isso porque perigo atual já significa iminência da violação ao bem jurídico. Um náufrago no meio do oceano com uma tábua de salvação, aquela situação de perigo é atual, e o perigo atual já é a iminência da violação ao bem jurídico “vida”. A iminência da violação do bem jurídico é ínsita ao conceito de “perigo”, de forma que falar em “perigo iminente” é pleonástico.

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20
Q

O CP estabelece, em seu artigo 24, que “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato [fato típico] para salvar de perigo atual que não provocou por sua vontade […]”. O que significa essa última parte? Não provocar por sua vontade exclui a possibilidade de dolo, em todas as suas acepções, ou apenas algumas delas? Abarca também a culpa?

A

O “não provocou por sua vontade” significa que não provocou dolosamente. Quer dizer, o sujeito que está em estado de necessidade, ele não pode ter provocado a situação de perigo dolosamente. Antigamente havia uma grande discussão doutrinária para saber se essa expressão “não provocou por sua vontade” também abrangeria o perigo provocado culposamente (já que a conduta culposa é uma conduta voluntária: você não tem a vontade de produzir o resultado, mas você tem a vontade de praticar a conduta).

Hoje, essa discussão já está um tanto quanto superada, sendo pacífico o entendimento de que essa expressão “não provocou por sua vontade” abrange apenas a ideia de não ter sido provocado dolosamente.

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21
Q

Para caracterizar o estado de necessidade, basta que a prática do fato típico tenha como objetivo salvar de perigo atual que não provocou por sua vontade?

A

O CP estabelece, em seu artigo 24, que “considera-se em estado de necessidade quem pratica o fato [fato típico] para salvar de perigo atual que não provocou por sua vontade nem podia de outro modo evitar (…)”.

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22
Q

É possível falar em estado de necessidade quando é o direito da própria pessoa que foi sacrificado para “salvar de perigo atual que não provocou por sua vontade nem podia de outro modo evitar”?

A

Direito próprio ou alheio

Direito próprio de quem está sendo salvo, não do salvador

É interessante a gente perceber que quando a gente fala estado necessidade, eu estou falando em sacrificar um bem jurídico para salvaguardar um outro bem jurídico, pode ser da mesma pessoa. Quer dizer, pode ser que eu viole o bem jurídico de uma pessoa para proteger um bem jurídico mais importante daquela mesma pessoa.

Aquele exemplo em que um carro desgovernado vem e vai atingir uma criança e uma pessoa de uma atitude até heroica se joga na frente daquela criança, empurra a criança e a criança cai no chão e se arrebenta e sofre escoriações. Quer dizer, ele sacrificou a integridade física da criança para salvaguardar um bem jurídico mais importante que era a vida dela.

23
Q

Para configurar o estado de necessidade, é necessário que o bem jurídico sacrificado seja “menos importante” que o bem jurídico protegido?

A

Só existe estado de necessidade se nós sacrificarmos o bem jurídico menos importante. Ou seja, a gente protege o bem jurídico de igual ou maior importância, sacrificando aquele que é o bem jurídico de igual ou menor importância.

24
Q

Para configurar o estado de necessidade, é necessário que o bem jurídico protegido seja de “igual ou menor importância”. Igual ou maior importância para quem?

A

Veja, há uma certa subjetividade nessa ideia de igual ou maior importância, mas a subjetividade não pode ser muito ampla. Eu costumo fazer o seguinte exercício intelectual, o seguinte raciocínio em aulas presenciais:

Se fosse para escolher, seria a vida do seu animal de estimação ou a vida de um ser humano que lhe é totalmente indiferente (não que a vida de alguém lhe seja indiferente, mas um ser humano que você não conhece, um ser humano desconhecido)?

E eu estou dizendo isso justamente para chegar à seguinte conclusão: ainda que o proprietário do pet considere que o seu animal, para ele, é muito mais importante do que a vida daquele ser humano, ainda que para ele seja assim; para o Estado, para o Direito Penal, para o ordenamento jurídico não tem como ser.

25
Q

A vida é o bem jurídico de maior importância entre aqueles tutelados pelo direito?

A

A vida do ser humano sobrepuja em importância os outros bens jurídicos. A vida humana é o bem jurídico mais importante que nós temos. Isso que eu estou dizendo é polêmico, há quem entenda que não, que, em verdade, o bem jurídico mais importante seria a liberdade. Os defensores da eutanásia defendem isso, que mais importante do que o direito à vida é o direito de ter a liberdade de escolher viver ou não viver. E há outros que entendem que mais importante do que a vida é a dignidade humana, porque vida sem dignidade não é a vida que merece ser vivida.

Mas enfim, com todo respeito a essas correntes de pensamento, mas eu partilho aqui do entendimento majoritário, eu penso que o bem jurídico mais importante é a vida humana, até porque é a partir desse bem jurídico que todos os outros derivam. Se você não tem vida humana, você não tem como titularizar os demais bens jurídicos, incluindo a dignidade e a liberdade.

26
Q

A se eleger a vida humana com o bem jurídico de maior importância, por mais que a pessoa pessoalmente, subjetivamente, afetivamente seja mais ligado ao pet, se o sujeito matar um ser humano para salvaguardar a vida do seu animal, não teremos aqui uma hipótese de estado de necessidade. O que teremos, então?

A

A hipótese do parágrafo 2º do art. 24 do CP: embora seja razoável exigir-se o sacrifício do direito ameaçado, a pena poderá ser reduzida de um a dois terços. Ou seja, é exatamente esse caso que nós estamos trazendo, em que eu sacrifico o bem jurídico mais importante para salvaguardar um menos importante.

27
Q

O policial ou o bombeiro pode alegar estado de necessidade para não enfrentar um perigo mais acentuado?

A

O §1º do art. 24 do CP diz que “não pode alegar estado de necessidade quem tinha o dever legal de enfrentar o perigo”. Numa prova objetiva, provavelmente será cobrada a literalidade do texto legal. Nesse caso, é importante diferenciar apenas se o dever tinha base legal (como o policial) ou contratual (como o segurança particular). Este último pode alegar estado de necessidade; aquele, não.

Todavia, para uma prova subjetiva, esse dispositivo precisa ser interpretado com muita razoabilidade, porque o Direito Penal não pode exigir de ninguém atitudes heroicas, ou seja, quando o § 1º diz aqui que não se pode invocar estado de necessidade, e significa dizer que esses agentes não podem invocar estado de necessidade nos mesmos moldes que seria passível de ser invocado por outro cidadão qualquer.

Ou seja, exige um rigor mais criterioso, mas, evidentemente, em casos excepcionais não se pode exigir atitudes heroicas. Em casos excepcionais, seria admissível, seria factível o estado de necessidade, sim.

28
Q

O artigo 25 do CP diz que “entende-se em legítima defesa quem, usando _moderadamente dos meios necessários_, repele injusta agressão […]”. Quais são os dois critérios da legitima defesa que estão estampados no trecho grifado?

A

A legítima defesa pressupõe a observância de dois critérios. O primeiro critério é a MODERAÇÃO. O segundo o critério é a NECESSIDADE.

MODERAÇÃO tem a ver com a proporção (é a ideia de proporcionalidade mesmo) entre a agressão e a reação.

NECESSIDADE significa identificar que aquele é o meio imprescindível para repelir a agressão. Então, perceba que, por vezes, o meio necessário, o meio imprescindível para repelir a agressão, você vai analisar a moderação daquela reação à luz da necessidade, à luz da imprescindibilidade.

29
Q

O art. 24 do CP diz que eu só estou em estado de necessidade se eu não pude evitar de outro modo aquela situação de perigo. Tal previsão também se aplica à legítima defesa? Uma pessoa armada que é atacada por alguém bem mais forte, e que escolhe, no lugar de empreender uma fuga possível, atirar. Ela ainda pode alegar legítima defesa?

A

No art. 25, na legítima defesa, a gente não tem isso, de modo que para caracterizar a legítima defesa, ainda que eu possa fugir, se eu decidir não fugir, ainda assim eu posso estar sob o palio da legítima defesa. Bom, por isso, meus amigos, a doutrina clássica costumava utilizar uma expressão que causava muita confusão. A doutrina classifica costumava dizer assim: “os punhos do especialista em artes marciais à arma se equiparam” (confusão porque ela serve para a legítima defesa, mas não para prejudicar um réu, por exemplo, em um crime; um especialista em artes marciais que usa os punhos para roubar não responde pela agravante do uso de arma de fogo).

30
Q

O artigo 25 do CP diz que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, _repele injusta agressão_ […]”. O que é uma agressão injusta?

A

Agressão injusta é aquela que não é referendada pelo ordenamento jurídico, isso é agressão injusta. Como assim? O Estado moderno é o detentor monopolista do exercício da violência. Então, quem pode exercer a violência, no Estado moderno, é o Estado. Só que o Estado permite que nós, cidadãos, venhamos a exercer essa violência de forma excepcional, como na legítima defesa, no estado de necessidade, no estrito cumprimento de dever legal.

Nesses casos, a violação que nós cometemos ao bem jurídico alheio é uma agressão justa, porque é permitida pelo ordenamento jurídico. A agressão injusta, por exclusão, é aquela que não é permitida pelo ordenamento jurídico, quase todas. Não necessariamente uma agressão criminosa.

31
Q

Existe legítima defesa de legítima defesa?

A

Para caracterizar a legítima defesa, é necessário que a agressão seja injusta. Como a legítima defesa é uma agressão justa, permitida pelo ordenamento jurídico, a rigor não existe legítima defesa de legítima defesa, ou seja, não existe uma legítima defesa concomitante, uma legítima defesa concorrente.

Todavia, existe a LEGÍTIMA DEFESA SUCESSIVA: a legítima defesa contra o excesso da primeira legítima defesa.

32
Q

O artigo 25 do CP diz que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, _atual ou iminente_ […]”. O que é a agressão atual? O que é agressão iminente?

A

Legítima defesa atual significa que ela se iniciou e ainda não se encerrou. Iminente é aquela que está prestes a acontecer. É uma agressão que ainda não ocorreu, mas ela está por começar e será em um tempo que o Estado não pode intervir. Não há tempo para nós requerermos ao Estado a tutela.

33
Q

Existe legítima de agressão pretérita? E de agressão em futuro remoto?

A

Não existe legítima defesa de agressão pretérita. O direito é de legítima defesa, não é de legítima vingança. Não existe legítima vingança, legítima revanche. Então, se a agressão já ocorreu não tem legítima defesa. Então, assim o sujeito bateu, mas ele já parou, se você vai e bate nele não é legítima defesa, são duas agressões, são duas lesões corporais, cada um responde pela sua lesão corporal.

Não há legítima defesa de agressão futuro remoto. Existe a legítima defesa de agressão atual e de agressão futuro iminente, mas não existe legítima defesa de agressão pretérita, já encerrada, e também não existe legítima defesa de agressão futuro remoto.

34
Q

O artigo 25 do CP diz que “entende-se em legítima defesa quem, usando moderadamente dos meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a _direito seu ou de outrem_”. Qualquer direito pode ser protegido por “legítima defesa”? Existe legítima defesa da honra?

A

Quando a gente fala em direito aqui, veja que aqui não há limites. Em tese, qualquer direito pode ser defendido legitimamente. Sabe, assim, eu vejo de vez em quando pessoas replicando a ideia de que hoje não se admite mais a legítima defesa da honra. Calma lá! Não é assim, não. Existe a legítima defesa da honra, sim, é que aquilo que outrora se chamava de legítima defesa da honra, não é legítima defesa e hoje isso é pacífico (aquela situação em que a pessoa flagranteava o cônjuge em adultério e invariavelmente matava o cônjuge adúltero e o amante ou a amante).

Isso não é legítima defesa da honra porque não existe moderação e necessidade. Isso não significa, contudo, que presentes a moderação e a necessidade em outra situação distinta, não possa haver uma legítima defesa da honra (o caso de alguém sendo xingado em público e que profere uma ameaça para que o agressor encerre as injúrias).

35
Q

O parágrafo único do artigo 25 do CP, que trata da legítima defesa, foi acrescentado pelo Pacote Anticrime, de 2019. Ele diz que “observados os requisitos previstos no caput deste artigo, considera-se também em legítima defesa o agente de segurança pública que repele agressão ou risco de agressão a vítima mantida refém durante a prática de crimes”. Por que ele foi acrescentado, e qual a diferença que ele faz na análise da legítima defesa?

A

Legislação-álibi

Além do caráter simbólico, não faz qualquer diferença

Essa aqui realmente não faz a menor diferença as outras são mais ou menos importantes, tem importância maior ou menor, mas essa aqui do parágrafo único, importância zero, se o legislador não tivesse acrescentado não faria a menor diferença na prática. Na prática, claro que é importante, porque sendo novidade tem tudo para começar a cair em prova de concurso, sobretudo prova objetiva.

Mas por que eu digo que na prática não tem diferença? Porque isso que o parágrafo único está dizendo que é legítima defesa já era legítima defesa antes de existir o parágrafo único. Até mesmo porque ele começa dizendo “observados os requisitos previstos no caput”. Ora, se presentes os requisitos do caput, está presente a legítima defesa!

36
Q

Quem são os destinatários da excludente do estrito cumprimento de um dever legal?

A

Um entendimento mais clássico diz que destinatários dessa excludente seriam exclusivamente funcionários públicos.

Um entendimento mais moderno (hoje, majoritário), no sentido de que, em regra, sim, é uma excludente para funcionários públicos, todavia, excepcionalmente, é possível, sim, que os particulares também se beneficiem dessa excludente. Um exemplo clássico é o dos pais em relação a seus filhos. Eles não são funcionários públicos, mas sobre eles pode pairar tal excludente, decorrente do exercício do poder familiar (como ao impor castigos – moderados, por claro – aos filhos).

37
Q

O policial, na troca de tiros com o bandido, acabou matando o bandido. Isso é estrito cumprimento de um dever legal?

A

Não, isso é legítima defesa. Pode ser legítima defesa própria ou de terceiro, pode ser o policial ali salvaguardando a própria vida ou pode ser salvaguardando a vida de uma outra pessoa, mas é legitima defesa, não é estrito cumprimento de um dever legal.

Para entender o porquê, basta lembrar que o policial não tem o dever legal de matar, então, se ele mata, na troca de tiros, não pode ser estrito cumprimento de dever legal. É diferente, por exemplo, do caso do carrasco (hipótese na qual matar faz parte, justamente, de seu dever legal).

38
Q

O estrito cumprimento de dever legal somente afasta a ilicitude da ação quando o dever é previsto em lei stricto sensu? Uma ordem direta dada a um subordinado se enquadra em tal categoria?

A

Lei ou ato infralegal. No direito penal há reserva legal apenas para a norma incriminadora, o que não é o caso de tal excludente. Assim, ela deve ser interpretada como o estrito cumprimento de um dever imposto em lei ou em um ato infralegal.

Se não fosse assim, os funcionários de uma faculdade pública, ao cumprir uma ordem do reitor de destruir carteiras velhas para abrir espaço para novas, estariam cometendo um crime contra o patrimônio. O que exclui a ilicitude, neste caso, é justamente a percepção da excludente do estrito cumprimento de dever legal como não somente de um dever imposto em lei, mas também em atos infralegais.

39
Q

Qual a diferença entre o estrito cumprimento de um dever legal e a obediência hierárquica?

A

Embora o estrito cumprimento admita não somente lei, como também outros atos infralegais, é necessário que seja um ato que não constitua uma ordem direta e específica dirigida a alguém, ou seja, tem que ser um ato com certo grau de abstração. Não é uma ordem que o superior deu ao subordinado. É, por exemplo, uma portaria, um decreto, um ato interministerial, mas não é uma ordem que diretamente um superior deu a um subordinado (este último talvez fosse o caso de obediência hierárquica, porque não exclui a ilicitude, exclui a culpabilidade).

40
Q

Quando a atuação invasiva de um médico (como numa cirurgia) se insere na excludente de ilicitude do “exercício regular de um direito”, e quando ela se insere na excludente do “estado de necessidade”?

A

A atividade médica no que diz respeito às intervenções não terapêuticas (como uma cirurgia estética, por exemplo) se insere no “exercício regular de um direito”.

A atividade médica no que diz respeito às intervenções terapêuticas se insere no “estado de necessidade”.

41
Q

Quais são os dois principais exemplos da doutrina para o exercício regular de um direito? De bônus cite um exemplo “processual” interessante que o professor destacou na aula….

A
  • A atividade médica em intervenções não terapêuticas (como a cirurgia estética)
  • A atividade desportivaque inclua contato físico (como o boxe ou o futebol)
  • A testemunha que mente ou se cala para não se autoincriminar
42
Q

Imagine que, em determinado dia, hora e local, eu estava com uma determinada pessoa cometendo crime, chega a polícia, eu consigo fugir e essa outra pessoa é presa, mas não me delata. Então, todos acreditam que a pessoa estava sozinha. Ela é processada criminalmente, e eu sou convocado ali para depor como testemunha. Durante o meu depoimento, eu como testemunha, com obrigação de dizer a verdade, o juiz me pergunta: onde o senhor estava no dia e hora do crime?Aí eu não falo, conto alguma outra história. Veja que a testemunha, quando mente, comete falso testemunho, mas, nesse caso, não seria falso testemunho. Por quê?

A

Porque essa testemunha está amparada por uma excludente de ilicitude: o exercício regular de um direito (mais especificamente, o direito de não se autoincriminar).

43
Q

O que são os ofendículos ou ofendículas (a expressão feminina é mais utilizada)? Qual a sua relação comas excludentes de ilicitude?

A

Ofendículas são instrumentos colocados para a preservação da propriedade, da vida das pessoas, da integridade física etc. É a cerca de arame farpado, a cerca elétrica, os cacos de vidro na parte superior do muro de uma casa.

A relação delas com as excludentes de ilicitude está na tese, defendida por boa parte da doutrina (ainda hoje, inclusive), segundo a qual as ofendículas seriam uma espécie de legítima defesa preordenada.

44
Q

As ofendículas, segundo uma parte da doutrina, seriam uma espécie de legítima defesa preordenada. Qual a dificuldade que essa tese apresenta para o próprio conceito de legítima defesa? Em outras palavras, qual o elemento, o requisito da legítima defesa que conflita com a ideia de uma legítima defesa preordenada? Como aqueles que ainda defendem tal tese superam esta dificuldade? E como a doutrina majoritária enquadra as ofendículas?

A

A legítima defesa, de acordo com o art. 25 do CP, repele uma agressão injusta que seja atual ou iminente. Não seria, assim, possível fazer uma legítima defesa antecipada, quando não há agressão ou mesmo ameaça de agressão.

Por isso, a maioria da doutrina entende que não existe uma legítima defesa preordenada. Mas para quem ainda defende tal tese, a legítima defesa preordenada seria possível porque as ofendículas somente funcionam exatamente quando a agressão é iminente. No momento que o ladrão tenta pular o muro da casa, por exemplo.

Para a doutrina majoritária, entretanto, as ofendículas seriam um exercício regular de um direito.

45
Q

Parte majoritária da doutrina entende que as ofendículas são o exercício regular de um direito. Qual a principal polêmica envolvendo as ofendículas, e qual o requisito, a exigência que se costuma colocar sobre as ofendículas para superá-la?

A

A principal polêmica não envolve o ladrão que tenta pular o muro para assaltar a casa, mas a pessoa inocente que com ela se machuca. A criança que tenta pular o muro para pegar a bola de futebol, o vizinho que tenta pular o próprio muro mas se desequilibra e encosta na cerca elétrica do muro do outro vizinho.

Para superar tal dificuldade, a doutrina costuma exigir que o exercício seja “regular” (no sentido de ser regulado). Deve observar regras do direito urbanístico, deve ser proporcional e razoável. A tensão da cerca não pode ser mortífera. A cerca não pode estar escondida atrás de uma vegetação. O muro deve ter uma altura razoável. Coisas nesse sentido.

46
Q

O consentimento do ofendido sempre será uma excludente de ilicitude?

A

Por vezes, a depender do tipo penal, o consentimento será uma causa de exclusão da própria tipicidade, por vezes, o consentimento não vai fazer com que tenhamos um fato típico, mas não ilícito por ter a excludente de ilicitude. Por vezes, o consentimento faz com que o fato seja atípico. Isso acontece naqueles tipos penais que pressupõem o dissenso (como o estupro).

47
Q

Parte majoritária da doutrina entende que o consentimento do ofendido exclui a ilicitude. Há, contudo, quem defenda que exclui a tipicidade. Quem são os principais defensores dessa tese, e quais os seus argumentos?

A

Os principais defensores são Roxin, Zipf e, no Brasil, Juarez Cirino dos Santos (no final de sua carreira acadêmica). Por que Roxin entende que o consentimento do ofendido sempre exclui a tipicidade e não a ilicitude?

Classicamente há dois entendimentos disputando a explicação do fenômeno do consentimento. Ambos entendem que o consentimento é uma renúncia, diferenciando-se apenas quanto ao objeto da renúncia: para a primeira corrente, quem consente renuncia ao bem jurídico em si, para a segunda, atualmente majoritária, renuncia apenas à proteção ao bem jurídico.

Só que Roxin, de forma minoritária, vai dizer que na verdade quem consente não renuncia, mas ao contrário, realiza o bem jurídico da forma que melhor lhe aprouver. Se é o patrimônio meu, eu posso usar aquele patrimônio da forma que me aprouver, e se a forma que me aprouver ali será permitir a destruição do patrimônio, eu não estou renunciando ao bem jurídico, eu estou realizando o bem jurídico naquilo que melhor me interessa. E se não tem lesão ao bem jurídico não tem tipicidade material.

48
Q

O consentimento do ofendido sempre exclui a ilicitude? Há requisitos?

A

O consentimento do ofendido nem sempre exclui a ilicitude. Quem mata alguém, mesmo que a pedido dele, comete homicídio, por exemplo. Isso porque o consentimento do ofendido, para excluir a ilicitude tem quatro requisitos:

  1. A disponibilidade do bem jurídico (esse é o óbice para o exemplo acima: a vida é considerada um bem jurídico indisponível). É pacífico, por exemplo, que os bens jurídicos “patrimônio” e “liberdade sexual” são disponíveis, por exemplo.
  2. O consentimento deve ser anterior ou concomitante à conduta ofensiva
  3. Capacidade para consentir (por isso que a relação sexual com um menor de 14 anos, em que pese se tratar de um bem jurídico disponível – a liberdade sexual –, configura crime: falta ao menor a capacidade para consentir)
  4. A legitimidade para consentir (pense nos pais que consentem com o ato de furar a orelha do filho menor de idade ou, ainda, com uma coleta de sangue para um exame médico)
49
Q

Um dos requisitos para que o consentimento afaste a ilicitude da conduta é que o bem jurídico seja disponível. Alguns deles, como o patrimônio e a liberdade sexual, não geram dúvidas sobre a disponibilidade. Outros, como a integridade física, geram intensa discussão. Afinal, a integridade física, a integridade corporal é um bem jurídico disponível ou é um bem jurídico indisponível?

A

O entendimento amplamente aceito é no sentido de que a integridade física, essa integridade corporal deve ser analisada sob uma perspectiva dúplice, porque em relação as lesões corporais de natureza leve teria ali um caráter de disponibilidade. Já para as lesões graves seria indisponível.

50
Q

Para parcela majoritária da doutrina, o bem jurídico “integridade física” tem natureza dúplice, pois as violações de natureza leve teriam um caráter disponível, e as graves, indisponível. Assim, caso eu peça para meu amigo decepar minha mão, se ele o fizer e com o meu consentimento, ainda assim praticará um fato típico e ilícito. Há, contudo, uma parcela minoritária da doutrina que discorda. Quem é seu principal expoente, e o que ele defende?

A

O professor Juarez Cirino dos Santos defende que a integridade corporal seria um bem jurídico disponível, independentemente do grau de lesão que fosse praticado. Aí, em relação a essa questão da lesão grave, muita gente contesta porque fala na cirurgia de transgenitalização, conhecida, popularmente, como “cirurgia de mudança de sexo”. Ela envolve a mutilação do corpo, com exclusão de órgãos funcionais. Dificilmente é possível enquadrar tal situação como uma lesão corporal leve. Todavia, dificilmente há como defender que a ação do médico é ilícita. Por isso, o professor defende que a integridade física é disponível mesmo para lesões graves.

(Há uma maneira infinitamente mais simples de resolver esse problema: reconhecer que o médico está no legítimo exercício de um direito).

51
Q

Imagine uma situação na qual a pessoa está lá no cartório para mim, me fazendo um favor - “ah, mas precisa de você, porque precisa de sua assinatura”. Aí eu falo com a pessoa por telefone: “faz o seguinte, se passe por mim e assine aí”. Aí, a pessoa vai, falsifica a minha assinatura com meu consentimento. Dá para falar, nesse caso, em consentimento do ofendido excluindo a ilicitude?

A

Não, não dá. Porque ainda que aparentemente diga respeito apenas a mim, já que é a minha assinatura, na verdade temos um crime contra a fé pública, e a fé pública é um bem jurídico de caráter indisponível. A fé pública é um bem jurídico supraindividual e os bens jurídicos supraindividuais são de caráter indisponível.

52
Q

Um dos requisitos do consentimento como excludente da ilicitude é a capacidade para consentir. Na liberdade sexual, tal capacidade é reconhecida a partir dos 14 anos. E em relação à integridade física (como na lesão corporal) e ao patrimônio?

A

Há ao menos três diferentes entendimentos (dois dos quais, majoritários)

  • O primeiro entendimento, que não reverbera na doutrina, diz que para aquilatar a capacidade para consentir, a gente deveria utilizar a idade da vulnerabilidade sexual, ou seja, essa idade de 14 anos também valeria para o crime contra o patrimônio, também valeria para a lesão corporal.
  • o segundo entendimento é o que diz que a capacidade se dá a partir dos 18, porque, aqui, essa capacidade seria para os atos da vida civil, lá do direito civil, então, capacidade para consentir só a partir dos 18.
  • a terceira corrente doutrinária é que diz que, na verdade, não existe uma idade para manifestar esse consentimento. O que a gente precisa é analisar, no caso concreto, se a pessoa tinha ou não o discernimento para o consentimento, tá?

Bom, quando a gente diz que são duas correntes que estão digladiando e a gente não consegue identificar qual é a majoritária, fique muito tranquilo em relação ao seu concurso, tá? Eu sei que, às vezes, você quer que diga: “não, mas, espera aí… Na prova eu marco o quê?” Fique tranquilo, quando a gente tem uma celeuma como essa, ou seja, quando eu não digo qual é a majoritária, é porque a doutrina realmente está bem dividida e a gente não tem jurisprudência a respeito. Veja que essa discussão é essencialmente doutrinária.

53
Q

Os pais têm a legitimidade para consentir na agressão a integridade física sempre?

A

Sempre não, só quando é do interesse da criança.