Teoria tradicional de interpretação da Lei Flashcards
Interpretar
Extrair das normas legais um certo sentido, no entanto, surgem questões quanto ao
objetivo; objeto; elementos e resultados da Interpretação.
Objeto da interpretação
O objeto da interpretação é, para a teoria tradicional, o próprio texto da norma. Neste sentido,
consideram-se duas conceções do texto.
A conceção constitutiva do texto (compreensio legis) reconhece que são as próprias características textuais – generalidade, abstração e formalidade –, na sua estrutura e no seu modo de expressão, que, por corresponderem a manifestações da universalidade racional, identificam a juridicidade do enunciado. O critério jurídico aparece na iminência do próprio texto, pelo que sem texto não existe critério. Na base desta compreensão está a experiência iluminista da racionalidade, consumada pelo positivismo legalista e normativista, e vai perdendo algum vigor ao longo do século XIX.
A conceção global do texto (extensio legis) compreende o conjunto das significações imanentes à norma legal como prescrição autossubsistente – e não apenas à letra. Partindo da proposta da teoria da interpretação de Savigny, podem distinguir-se os elementos intratextuais (intrínsecos ao próprio texto) dos elementos extratextuais (imputados ao texto pelo intérprete).
Constituem elementos intratextuais:
- Elemento gramatical: a letra da lei, isto é, o texto na sua relevância gramático-semântica, considerando-se as leis da linguagem e os usos linguísticos com e sem sentido técnico- jurídico. É o elemento mais significante na abordagem primária que se faz da lei. Os restantes elementos intratextuais não correspondem à letra da lei, mas ao seu espírito.
- Elemento histórico: o texto na sua relevância histórica, vinculado às circunstâncias do seu aparecimento e ao percurso que culminou na sua elaboração.
- Elementos lógico e sistemático (fundidos posteriormente num único): o primeiro a referir-se a uma unidade lógico-estrutural da norma legal, identificando a sua estrutura hipotético- condicional, o intérprete deve ter em conta o contexto da lei, invocando normas inseridas em lugares contíguos, mas também, lugares paralelos; o segundo a compreender a norma na sua relação com as outras normas do sistema, tendo em atenção que todas pressupõem a mesma linguagem e rede de conceitos e que é a mobilização desses conceitos que origina a sua unidade.
Elemento extratextual
Reconhece-se como elemento extratextual o elemento racional-teleológico, preocupado com o motivo ou com o fim da norma. Numa primeira fase do seu pensamento, Savigny rejeitava a utilização deste elemento no processo interpretativo, sob pena de o julgador atribuir uma resposta com uma finalidade arbitrária. Posteriormente, assumiu uma posição menos drástica: afirmou que, à partida, numa situação metodológica-regra, em que a lei aparecesse num estado saudável, a interpretação da norma implicaria o recurso aos elementos intratextuais; no entanto, ainda que não deixasse de o considerar exterior ao texto, admitiu a possibilidade de convocar pontualmente este elemento em situações metodológicas excecionais, em que a norma se apresentasse num estado imperfeito, insuficiente e defeituoso, não sendo possível interpretá-la mobilizando os elementos intratextuais.
Função delimitadora do elemento gramatical
Embora o texto não se esgote no elemento gramatical, este não deixa de desempenhar uma função autónoma – inconfundível com a dos outros elementos intratextuais – que se nos impõe com uma prioridade analítica e cronológica e com uma força normativo-prescritiva vinculante, condicionando todo o processo interpretativo. Tem uma função autónoma inconfundível com as dos restantes elementos intratextuais. Trata-se, com efeito, de assumir a relevância negativa da letra da lei, manifestada em dois sentidos distintos.
1º- atribui-se à letra da lei a conceção de fronteira das possibilidades de interpretação. O intérprete deve excluir quaisquer sentidos que o elemento gramatical não admita, de modo que o que se cumpre fora desse campo não possa ser entendido como interpretação da lei, mas somente como desenvolvimento judicial do Direito.
2ª- refere-se a teoria da alusão – de Engisch –, consagrada no artigo 9.o/2 do Código Civil, que reconhece que tem de haver uma correspondência verbal mínima entre a relevância gramatical da lei e o pensamento legislativo determinado pela interpretação.
Deve privilegiar-se o teor da lei, pelo que, se esta não for clara, só são admissíveis os sentidos que encontrem alguma expressão na letra (ainda que seja uma expressão incompleta ou imperfeita)- Relevância negativa da lei.
Como determinar o sentido do texto
Determinam-se, num primeiro momento, os sentidos excluídos – segundo Jellinek, os candidatos negativos, inseridos no campo da certeza negativa –, precisamente por não terem o mínimo de correspondência com a lei, e obtém-se o elenco dos sentidos possíveis. Num segundo momento, a lei desempenha uma função positiva. Considera os sentidos possíveis e, desses, seleciona os sentidos mais naturais ou imediatos – os candidatos positivos, inseridos no território da certeza positiva –, que correspondem aos usos mais habituais das palavras ou expressões em causa. Não deixa de admitir os sentidos menos naturais – os candidatos neutros, inseridos no território da dúvida possível –, que correspondem a utilizações menos comuns dos elementos linguísticos em causa, embora permitidos pela letra. Trata-se então de excluir todos os sentidos incompatíveis com a relevância linguística da norma.
Salienta-se que, ao contrário da relevância negativa, a relevância positiva do elemento gramatical é realizada, já não autonomamente, mas em conjunto com os elementos histórico e lógico- sistemático. Para além disso, adquire um caráter meramente indicativo, isto é, não normativo. No fundo, pode ser contrariada pelas funções dos restantes elementos.
Como era realizada a interpretação
A interpretação terá de ser realizada em abstrato, sem perturbar o caso. Se, após a determinação dos candidatos negativos, positivos e neutros, o intérprete dispuser de vários sentidos possíveis, terá de chegar a um resultado com apenas um sentido, através da convocação de todos os elementos intratextuais.
Objetivo da interpretação
A doutrina procurou descobrir o objetivo da interpretação, isto é, o fim que esta visa atingir. Surgiram, neste contexto, duas perspetivas:
- Subjetivismo;
-Objetivismo
Subjetivismo
- O subjetivismo surgiu e dominou nas primeiras décadas do século XIX. Sustenta que o propósito decisivo da interpretação está na averiguação da intentio-auctoris do sujeito- legislador.
Assim, o conteúdo da norma deve reconstituir a voluntas histórico-psicológica e o pensamento real do autor da lei (mens legislatoris). - O subjetivismo radical do subjetivismo moderado: o primeiro exige uma reconstituição tão plena quanto possível da vontade histórico-psicológica do legislador, mas sem pôr em causa a relevância negativa da letra da lei; o segundo exige uma reconstituição da vontade do legislador, mas compatível com o texto da norma, aludindo a uma teoria da alusão de modo a procurar o reflexo mínimo indispensável da voluntas legislatoris no teor verbal do texto.
Objetivismo
- O objetivismo surgiu na segunda metade do século XIX. Entende que a interpretação deve reconhecer a intentio-operis, isto é, o sentido assimilado pelo próprio texto da lei, abstraído do legislador real e concentrado somente nas significações que o texto legal encarne e exprime autonomamente (mens legis). Decorrido o ato legislativo, a norma desvincula-se da relação direta com o seu autor. Procuravam a intenção normativa da própria lei.
- O objetivismo histórico do objetivismo atualista: o primeiro pressupõe a interpretação da norma conforme o contexto em que foi produzida; o segundo pressupõe a interpretação da norma considerando o contexto em que esta é aplicada.
Presunção do legislador razoável
Associada ao objetivismo está a presunção do legislador razoável, que defende que o intérprete não está vinculado ao pensamento do legislador real, mas à vontade de um legislador ideal, o qual:
1) consagrou as melhores soluções – razoabilidade quanto ao conteúdo ou mérito material (artigo 9.o/3 CC);
2) soube exprimir com suficiente correção o seu pensamento – razoabilidade no plano formal- expressivo (artigo 9.o/3 CC);
3) conferiu às suas prescrições uma autêntica flexibilidade evolutiva, capaz de refletir o condicionalismo renovado em que estas vão vivendo – razoabilidade no plano evolutivo- atualista (artigo 9.o/1 CC).
Ponto comum entre as duas teorias
As duas teorias partilham a consideração do texto como objeto da interpretação. Realçam a relevância negativa da letra da lei, na medida em que defendem a interpretação em abstrato e a inserção do texto no sistema de normas e conceitos. Consideram o objetivo da interpretação relativamente ao círculo dos sentidos possíveis (não seria compatível com as exigências fortes da teoria tradicional privilegiar um candidato negativo, sem qualquer correspondência verbal com o elemento gramatical). Adquirem, assim, uma índole dogmática.
Os elementos ou fatores textuais e a sua relevância determinada pela opção quanto ao objetivo da interpretação
1- O elemento gramatical é, na perspetiva de Savigny, o fator básico: o objeto da interpretação identifica-se com o texto e compreende a lei geralmente com um valor negativo, mas também positivo ou seletivo.
2- O elemento histórico abrange, por um lado, a occasio legis (conjunto de condições históricas de ordem política, económica, social, cultural que convergiram no tempo em que a lei foi elaborada e motivaram a sua prescrição) e, por outro, os materiais da lei/trabalhos preparatórios (textos que foram sendo produzidos em diversas intervenções, quase sempre públicas, que corresponderam ao processo de construção do ato legislativos).
3- Savigny pensava sobretudo na estrutura lógica da norma legal (hipótese e estatuição), mas hoje dispomos de uma grande variedade de leis e programas, pelo que não faz muito sentido falar no elemento lógico. Este não deixa de ser importante para perceber até que ponto as normas legais estão dependentes das regras da lógica e da consistência.
4- Quanto ao elemento sistemático, Savigny defende o nexo interno que considera a norma legal na sua relação com as outras normas numa grande unidade – o sistema jurídico. Trata-se de considerar o contexto da lei, invocando as disposições reguladoras dos problemas e institutos em que esta se enquadra, e os lugares paralelos, através da comparação de disposições reguladoras de problemas e institutos diferentes dos disciplinados pela norma em causa.
Resultados da interpretação
- Interpretação declarativa
- Interpretação revogatória/ab-rogante
- Interpretação extensiva
- Interpretação restritiva
- Interpretação enunciativa
Interpretação Declarativa
Dentro do círculo de sentidos permitidos pelo texto da lei, o intérprete opta pelo candidato positivo – aquele que representa a significação mais natural, mais rigorosa e mais habitual. Verifica-se uma consonância perfeita entre a letra e o espírito.