Teoria tradicional de interpretação da Lei Flashcards

1
Q

Interpretar

A

Extrair das normas legais um certo sentido, no entanto, surgem questões quanto ao
objetivo; objeto; elementos e resultados da Interpretação.

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Q

Objeto da interpretação

A

O objeto da interpretação é, para a teoria tradicional, o próprio texto da norma. Neste sentido,
consideram-se duas conceções do texto.
A conceção constitutiva do texto (compreensio legis) reconhece que são as próprias características textuais – generalidade, abstração e formalidade –, na sua estrutura e no seu modo de expressão, que, por corresponderem a manifestações da universalidade racional, identificam a juridicidade do enunciado. O critério jurídico aparece na iminência do próprio texto, pelo que sem texto não existe critério. Na base desta compreensão está a experiência iluminista da racionalidade, consumada pelo positivismo legalista e normativista, e vai perdendo algum vigor ao longo do século XIX.

A conceção global do texto (extensio legis) compreende o conjunto das significações imanentes à norma legal como prescrição autossubsistente – e não apenas à letra. Partindo da proposta da teoria da interpretação de Savigny, podem distinguir-se os elementos intratextuais (intrínsecos ao próprio texto) dos elementos extratextuais (imputados ao texto pelo intérprete).

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3
Q

Constituem elementos intratextuais:

A
  • Elemento gramatical: a letra da lei, isto é, o texto na sua relevância gramático-semântica, considerando-se as leis da linguagem e os usos linguísticos com e sem sentido técnico- jurídico. É o elemento mais significante na abordagem primária que se faz da lei. Os restantes elementos intratextuais não correspondem à letra da lei, mas ao seu espírito.
  • Elemento histórico: o texto na sua relevância histórica, vinculado às circunstâncias do seu aparecimento e ao percurso que culminou na sua elaboração.
  • Elementos lógico e sistemático (fundidos posteriormente num único): o primeiro a referir-se a uma unidade lógico-estrutural da norma legal, identificando a sua estrutura hipotético- condicional, o intérprete deve ter em conta o contexto da lei, invocando normas inseridas em lugares contíguos, mas também, lugares paralelos; o segundo a compreender a norma na sua relação com as outras normas do sistema, tendo em atenção que todas pressupõem a mesma linguagem e rede de conceitos e que é a mobilização desses conceitos que origina a sua unidade.
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4
Q

Elemento extratextual

A

Reconhece-se como elemento extratextual o elemento racional-teleológico, preocupado com o motivo ou com o fim da norma. Numa primeira fase do seu pensamento, Savigny rejeitava a utilização deste elemento no processo interpretativo, sob pena de o julgador atribuir uma resposta com uma finalidade arbitrária. Posteriormente, assumiu uma posição menos drástica: afirmou que, à partida, numa situação metodológica-regra, em que a lei aparecesse num estado saudável, a interpretação da norma implicaria o recurso aos elementos intratextuais; no entanto, ainda que não deixasse de o considerar exterior ao texto, admitiu a possibilidade de convocar pontualmente este elemento em situações metodológicas excecionais, em que a norma se apresentasse num estado imperfeito, insuficiente e defeituoso, não sendo possível interpretá-la mobilizando os elementos intratextuais.

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5
Q

Função delimitadora do elemento gramatical

A

Embora o texto não se esgote no elemento gramatical, este não deixa de desempenhar uma função autónoma – inconfundível com a dos outros elementos intratextuais – que se nos impõe com uma prioridade analítica e cronológica e com uma força normativo-prescritiva vinculante, condicionando todo o processo interpretativo. Tem uma função autónoma inconfundível com as dos restantes elementos intratextuais. Trata-se, com efeito, de assumir a relevância negativa da letra da lei, manifestada em dois sentidos distintos.
1º- atribui-se à letra da lei a conceção de fronteira das possibilidades de interpretação. O intérprete deve excluir quaisquer sentidos que o elemento gramatical não admita, de modo que o que se cumpre fora desse campo não possa ser entendido como interpretação da lei, mas somente como desenvolvimento judicial do Direito.
2ª- refere-se a teoria da alusão – de Engisch –, consagrada no artigo 9.o/2 do Código Civil, que reconhece que tem de haver uma correspondência verbal mínima entre a relevância gramatical da lei e o pensamento legislativo determinado pela interpretação.
Deve privilegiar-se o teor da lei, pelo que, se esta não for clara, só são admissíveis os sentidos que encontrem alguma expressão na letra (ainda que seja uma expressão incompleta ou imperfeita)- Relevância negativa da lei.

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6
Q

Como determinar o sentido do texto

A

Determinam-se, num primeiro momento, os sentidos excluídos – segundo Jellinek, os candidatos negativos, inseridos no campo da certeza negativa –, precisamente por não terem o mínimo de correspondência com a lei, e obtém-se o elenco dos sentidos possíveis. Num segundo momento, a lei desempenha uma função positiva. Considera os sentidos possíveis e, desses, seleciona os sentidos mais naturais ou imediatos – os candidatos positivos, inseridos no território da certeza positiva –, que correspondem aos usos mais habituais das palavras ou expressões em causa. Não deixa de admitir os sentidos menos naturais – os candidatos neutros, inseridos no território da dúvida possível –, que correspondem a utilizações menos comuns dos elementos linguísticos em causa, embora permitidos pela letra. Trata-se então de excluir todos os sentidos incompatíveis com a relevância linguística da norma.
Salienta-se que, ao contrário da relevância negativa, a relevância positiva do elemento gramatical é realizada, já não autonomamente, mas em conjunto com os elementos histórico e lógico- sistemático. Para além disso, adquire um caráter meramente indicativo, isto é, não normativo. No fundo, pode ser contrariada pelas funções dos restantes elementos.

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7
Q

Como era realizada a interpretação

A

A interpretação terá de ser realizada em abstrato, sem perturbar o caso. Se, após a determinação dos candidatos negativos, positivos e neutros, o intérprete dispuser de vários sentidos possíveis, terá de chegar a um resultado com apenas um sentido, através da convocação de todos os elementos intratextuais.

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8
Q

Objetivo da interpretação

A

A doutrina procurou descobrir o objetivo da interpretação, isto é, o fim que esta visa atingir. Surgiram, neste contexto, duas perspetivas:
- Subjetivismo;
-Objetivismo

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9
Q

Subjetivismo

A
  • O subjetivismo surgiu e dominou nas primeiras décadas do século XIX. Sustenta que o propósito decisivo da interpretação está na averiguação da intentio-auctoris do sujeito- legislador.
    Assim, o conteúdo da norma deve reconstituir a voluntas histórico-psicológica e o pensamento real do autor da lei (mens legislatoris).
  • O subjetivismo radical do subjetivismo moderado: o primeiro exige uma reconstituição tão plena quanto possível da vontade histórico-psicológica do legislador, mas sem pôr em causa a relevância negativa da letra da lei; o segundo exige uma reconstituição da vontade do legislador, mas compatível com o texto da norma, aludindo a uma teoria da alusão de modo a procurar o reflexo mínimo indispensável da voluntas legislatoris no teor verbal do texto.
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10
Q

Objetivismo

A
  • O objetivismo surgiu na segunda metade do século XIX. Entende que a interpretação deve reconhecer a intentio-operis, isto é, o sentido assimilado pelo próprio texto da lei, abstraído do legislador real e concentrado somente nas significações que o texto legal encarne e exprime autonomamente (mens legis). Decorrido o ato legislativo, a norma desvincula-se da relação direta com o seu autor. Procuravam a intenção normativa da própria lei.
  • O objetivismo histórico do objetivismo atualista: o primeiro pressupõe a interpretação da norma conforme o contexto em que foi produzida; o segundo pressupõe a interpretação da norma considerando o contexto em que esta é aplicada.
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11
Q

Presunção do legislador razoável

A

Associada ao objetivismo está a presunção do legislador razoável, que defende que o intérprete não está vinculado ao pensamento do legislador real, mas à vontade de um legislador ideal, o qual:
1) consagrou as melhores soluções – razoabilidade quanto ao conteúdo ou mérito material (artigo 9.o/3 CC);
2) soube exprimir com suficiente correção o seu pensamento – razoabilidade no plano formal- expressivo (artigo 9.o/3 CC);
3) conferiu às suas prescrições uma autêntica flexibilidade evolutiva, capaz de refletir o condicionalismo renovado em que estas vão vivendo – razoabilidade no plano evolutivo- atualista (artigo 9.o/1 CC).

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12
Q

Ponto comum entre as duas teorias

A

As duas teorias partilham a consideração do texto como objeto da interpretação. Realçam a relevância negativa da letra da lei, na medida em que defendem a interpretação em abstrato e a inserção do texto no sistema de normas e conceitos. Consideram o objetivo da interpretação relativamente ao círculo dos sentidos possíveis (não seria compatível com as exigências fortes da teoria tradicional privilegiar um candidato negativo, sem qualquer correspondência verbal com o elemento gramatical). Adquirem, assim, uma índole dogmática.

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13
Q

Os elementos ou fatores textuais e a sua relevância determinada pela opção quanto ao objetivo da interpretação

A

1- O elemento gramatical é, na perspetiva de Savigny, o fator básico: o objeto da interpretação identifica-se com o texto e compreende a lei geralmente com um valor negativo, mas também positivo ou seletivo.

2- O elemento histórico abrange, por um lado, a occasio legis (conjunto de condições históricas de ordem política, económica, social, cultural que convergiram no tempo em que a lei foi elaborada e motivaram a sua prescrição) e, por outro, os materiais da lei/trabalhos preparatórios (textos que foram sendo produzidos em diversas intervenções, quase sempre públicas, que corresponderam ao processo de construção do ato legislativos).
3- Savigny pensava sobretudo na estrutura lógica da norma legal (hipótese e estatuição), mas hoje dispomos de uma grande variedade de leis e programas, pelo que não faz muito sentido falar no elemento lógico. Este não deixa de ser importante para perceber até que ponto as normas legais estão dependentes das regras da lógica e da consistência.
4- Quanto ao elemento sistemático, Savigny defende o nexo interno que considera a norma legal na sua relação com as outras normas numa grande unidade – o sistema jurídico. Trata-se de considerar o contexto da lei, invocando as disposições reguladoras dos problemas e institutos em que esta se enquadra, e os lugares paralelos, através da comparação de disposições reguladoras de problemas e institutos diferentes dos disciplinados pela norma em causa.

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14
Q

Resultados da interpretação

A
  • Interpretação declarativa
  • Interpretação revogatória/ab-rogante
  • Interpretação extensiva
  • Interpretação restritiva
  • Interpretação enunciativa
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15
Q

Interpretação Declarativa

A

Dentro do círculo de sentidos permitidos pelo texto da lei, o intérprete opta pelo candidato positivo – aquele que representa a significação mais natural, mais rigorosa e mais habitual. Verifica-se uma consonância perfeita entre a letra e o espírito.

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16
Q

Interpretação revogatória ou ab-rogante

A

Verifica-se uma antinomia insuperável entre a letra e o espírito

17
Q

Interpretação extensiva

A

O intérprete opta por um candidato neutro, com um sentido possível (e menos natural) mais amplo do que a significação considerada mais natural. Alarga-se a letra para a fazer coincidir com o espírito.
Atente-se nos seguintes enunciados:
Enunciado 1: “Compete à Assembleia Municipal autorizar a Câmara Municipal a vender bens imóveis
de valor não superior a x”. Vender é transmitir o direito de propriedade a título oneroso.
Enunciado 2: “Compete à Assembleia Municipal autorizar a Câmara Municipal a alienar bens imóveis de valor não superior a x”. Alienar é transmitir o direito de propriedade, tanto a título oneroso como gratuito.
Admitindo que “vender” é o sentido mais natural e “alienar” é o sentido menos natural, conclui- se que o candidato neutro é mais extenso do que o candidato positivo.

18
Q

Interpretação restritiva

A

O intérprete opta por um candidato neutro, com um sentido possível (e menos natural) mais restrito do que a significação considerada mais natural, extraindo da norma um significado mais rigoroso e particular. Restringe-se a letra para a fazer coincidir com o espírito.
Atente-se nos seguintes enunciados:
Enunciado 1: “Compete à Assembleia Municipal autorizar a Câmara Municipal a vender bens imóveis
de valor não superior a x”. Vender é transmitir o direito de propriedade a título oneroso.
Enunciado 2: “Compete à Assembleia Municipal autorizar a Câmara Municipal a alienar bens imóveis de valor não superior a x”. Alienar é transmitir o direito de propriedade, tanto a título oneroso como gratuito.
Admitindo que “alienar” é o sentido mais natural e “vender” é o sentido menos natural, conclui- se que o candidato neutro é mais estrito do que o candidato positivo por já não integrar, na hipótese da norma, o significante da transmissão da propriedade a título gratuito (doação).

19
Q

Interpretação enunciativa

A

O intérprete opta por um candidato neutro logicamente implícito na letra da lei. Pode fazê-lo
mobilizando três argumentos lógicos distintos:
- A maiori ad minus: a lei que permite o mais também permite o menos. Por exemplo, partindo de uma norma que afirma que é da competência da Câmara Municipal alienar bens imóveis com valor não superior a x, conclui-se que também é da competência da Câmara Municipal onerar (oferecer o valor correspondente de um bem como garantia para que um credor tenha preferência sobre os demais credores – hipoteca) bens imóveis de valor não superior a x.
- A minori ad maius: a lei que proíbe o menos também proíbe o mais. Por exemplo, partindo de uma norma que exige que a Câmara Municipal precisa da autorização da Assembleia Municipal para hipotecar bens imóveis, é possível extrair daí que a Câmara Municipal necessitará da autorização da Assembleia Municipal para alienar bens imóveis de valor superior a x.
- A contrario sensu: se a lei permite A é porque o seu oposto é proibido.

20
Q

Conclusões a cerca dos resultados de interpretação

A

As formulações da teoria tradicional são pouco felizes nas considerações relativas à interpretação restritiva e, em especial, à interpretação extensiva, pois alargar a letra para a fazer coincidir com o espírito poderia levar-nos para além do elenco dos sentidos possíveis. Conclui-se que o processo interpretativo que cumprimos em abstrato escolheu um sentido que, sendo ainda permitido pela letra, se integra no elenco dos sentidos menos naturais que pode ser mais ou menos extenso.
Imagine-se uma situação que afirme “É nula a declaração negocial que careça da forma legalmente prescrita”. Sabendo que a prescrição-regra consiste no princípio da consensualidade, sabe-se também que há exceções que determinam que o contrato só é válido se respeitar uma determinada forma. Quando estou a interpretar o significante “nula”, podia admitir um sentido mais natural e um sentido menos natural. No rigor dos conceitos, poder-se-á dizer que temos duas espécies diferentes do mesmo género: uma nulidade absoluta (ou nulidade) e uma nulidade relativa (ou anulabilidade). Pode acontecer estar escrito que o negócio jurídico é nulo e, contudo – atendendo aos materiais da lei e considerando os elementos sistemáticos –, eu concluir que o sentido que devo privilegiar quando estou a interpretar a norma não é o mais natural (a nulidade), mas aquele constituído pela nulidade relativa – menos habitual, menos rigoroso e mais forçado, mas ainda assim permitido.
O jogo destes resultados que vamos obtendo com a interpretação vai ganhando maior dinâmica à medida que a importância do elemento racional se vai tornando mais significativa, permitindo uma experimentação mais coerente que nos leva a admitir novos resultados, superando o entendimento tradicional que até agora privilegiámos.