Conceitos gerais do 1º Capítulo Flashcards
Conceito geral de Sistema jurídico
Ao desenvolver o tratamento da controvérsia, o terceiro imparcial compara as posições juridicamente relevantes dos sujeitos envolvidos e, posteriormente, reconhece a cada uma das partes (por ele tratadas como homo humanus de autonomia-liberdade e de responsabilidade) aquilo que é seu. Esta decisão articula-se com um juízo-julgamento, construído pela pressuposição dos fundamentos e critérios que integram o sistema jurídico e pela experimentação dos mesmos na perspetiva do caso concreto, apesar de não ter em conta as suas convicções pessoais ou os interesses do grupo que possa integrar – evitando, assim, um processo de decisão arbitrário. A sentença que põe termo à controvérsia pode ver-se sempre como um juízo decisório (ou decisão judicativa) que manifesta uma voluntas sustentada numa autoridade-potestas e que realiza o sistema- compromissos comunitários que este estabiliza.
A dialética Sistema/Problema
O sistema jurídico não compreende um conjunto de significações fechadas. É aberto e dinâmico, caracterizando-se por estar em constante reinvenção. Partindo da consideração das controvérsias práticas, o grande desafio que se coloca ao julgador é o de reconhecer a novidade irredutível do caso e a sua materialidade específica, construindo, simultaneamente, uma solução inserida num contexto-ordem que fornece padrões de comparabilidade. Esse contexto-ordem explicita-se através do sistema jurídico e dos seus diversos estratos. A experiência do caso concreto é decisiva nas transformações que o sistema vai sofrendo levando à recompreensão do sistema.
A dinâmica do sistema é regressiva e a posteriori, visto que assenta na reconstituição analógica do discurso prático. Depois de resolvido através de uma decisão judicativa por parte do julgador, o problema jurídico passa a integrar o sistema. Por exemplo, a autonomização do critério normativo do abuso do direito impôs a recompreensão do princípio da autonomia privada.
A novidade introduzida por cada caso concreto influencia o pré-disponível, levando a alterações do sistema jurídico. Assim, preservam-se simultaneamente a unidade e dinâmica do Corpus Iuris, permanecendo a dialética sistema/problema e, portanto, sistema/historicidade.
Dimensões que se propõem a representar o sistema jurídico
- Dimensão axiológica: a validade comunitária (os compromissos e as intenções práticas da communitas) centrada na experiência do sujeito-pessoa na sua identidade jurídica, reconstituída a partir de uma exigência de comparabilidade (acentuação fundamental que prolonga a noção de bilateralidade atributiva).
- Dimensão problemática das controvérsias práticas: o novum irredutível à previsibilidade dos esquemas dogmáticos, ou seja, qualquer caso concreto novo que apareça, insere-se nos esquemas dogmáticos, tornando-o previsível.
- Dimensão dogmática: domínio que vai convertendo a validade comunitária num sistema, introduzindo as práticas de estabilização e a figura do terceiro julgador como condiçõescruciais para a comparabilidade.
- Dimensão praxística ou judicativo-decisória: perspetiva encarada como uma prática de realização identificadora de casos jurídicos. A sentença não é uma mera opção da voluntas do julgador nem uma manifestação da sua autoridade, mas uma resposta em nome do direito que mobilize os fundamentos e critérios do sistema.
As dimensões dogmática e praxística podem expor-se como condições de institucionalização das outras. Sendo este um sistema aberto, alimenta-se do contacto com as novas questões que a prática jurídica vai colocando: assimila-as na sua intencionalidade normativa e projeta-as no conteúdo dos seus vários materiais.
O sistema é o resultado da dialética entre uma dimensão de ordenação – que tende à estabilidade – e uma dimensão prática/problemática – que tende à instabilidade, à mutação.
A compreensão normativista unidimensional do Sistema (Teoria Tradicional)
O sistema jurídico, durante o positivismo normativista do século XIX, era compreendido numa perspetiva unidimensional e fechado. No horizonte francês, consideravam-se as normas emanadas do poder legislativo; no horizonte alemão, consideravam-se as normas gerais, abstratas e formais num plano hipotético-condicional, assim como a aplicação lógico-dedutiva do jurista, que a ciência do direito traduzisse racionalmente a partir de fontes pré-existentes (particularmente, o costume). De qualquer forma, em ambos os horizontes as normas apresentavam-se nos seus enunciados hipotético-condicionais, com um modo de ser abstrato (o direito existia nas suas proposições normativas, independentemente da sua realização concreta, que nada lhe acrescentava no plano da juridicidade), de modo que conhecer o sistema jurídico passava por racionalizar e descrever esses vários programas que compunham o direito pensado em termos estritamente lógicos.
O Sistema Jurídico como Sistema Pluridimensional (Teoria Corrente)
Pensar o direito hoje não passa apenas por considerá-lo nas suas proposições normativas. A realidade social é, atualmente, um elemento crucial do sistema jurídico e relevantíssimo para a sua compreensão. Há uma dinâmica de reconstituição regressiva com base nas questões quotidianamente colocadas e que interpelam diariamente a normatividade do direito.
A conceção pluridimensional atual do sistema permite identificar vários estratos, com diversos modos de vinculação, embora todos eles de direito vigente (que não se reduzem ao modus prescritivo-autoritário políticoconstitucionalmente institucionalizado), aos quais o julgador se submete no momento em que está a assimilar a especificidade da controvérsia e a procurar solucionar o caso concreto: os princípios vinculam-nos enquanto validade, as normas legais vinculam-nos enquanto autoridade, os exemplos jurisdicionais vinculam-nos na medida de uma presunção de justeza, os modelos dogmáticos vinculam-nos na medida de uma presunção de racionalidade. Assim, o juízo julgamento deve ser constituído atendendo a tais diferenças.
O Contraponto entre Fundamentos e Critérios
Drucilla Cornell e Adela Cortina recorrem a uma analogia bastante elucidativa que permite, metaforicamente, assimilar a distinção entre fundamentos e critérios. Trata-se de comparar os fundamentos (e muito especialmente os princípios) à luz projetada por um farol ou à orientação determinada por uma bússola; solucionar a controvérsia juridicamente relevante e o problema em que ela se vai transformando à travessia de um território desconhecido pelo julgador; os critérios a itinerários ou mapas.
A travessia, com as especificidades e novidades que vão surgindo, transmite a ideia de irrepetibilidade, de novidade que os problemas vão apresentando e que vão sendo filtradas através do exercício de comparação que se vai desenvolvendo.
Esta travessia não se poderia cumprir adequadamente se o caminhante (o julgador à procura da decisão-juízo) não beneficiasse de apoios e orientações cumpridas por outros caminhantes anteriores (legisladores, juízes, juristas dogmáticos…). Nesse sentido, para atravessar esse território e chegar a bom porto, tem à sua disposição dois tipos de apoios principais (Sistematização do exemplo):
- a luz do farol ou a indicação da bússola, que lhe proporcionam uma orientação (constitutiva) fundamental, garantindo que, ao longo do percurso, realiza e não se afasta de certas exigências;
- os mapas e itinerários, que, mais ou menos pormenorizadamente, preveem os problemas que ele irá enfrentar (encruzilhadas, obstáculos, armadilhas, atalhos) no decorrer do percurso, de forma a facilitarem a sua trajetória.
Assim:
O fundamento, do ponto de vista argumentativo, é o elemento que explica e justifica o processo pelo qual se desenvolve um certo argumento, bem como a racionalização nuclear que o torna inteligível. Guia o jurista para a realização material de um discurso ou de uma conduta, libertandoo de qualquer arbitrariedade. Para além disso, é entendido como o universo de inteligibilidade prático-jurídica dos restantes estratos, condicionando-os no momento em que são objeto da interpretação jurídica. Os princípios normativos enquanto fundamentos exprimem aspirações, exigências, compromissos práticos que não podem ser preteridos, frustrados, violados pelo julgador na solução que ele vai dar ao problema concreto.
O critério assume-se como um esquema operatório disponível que antecipa ou pressupõe um determinado problema, podendo ser imediatamente convocado para o resolver e/ou préesquematizar para este uma solução minimamente acabada. Ao ser experimentado na perspetiva de uma controvérsia concreta, tem de ser considerado, impreterivelmente, na sua relação com os fundamentos, pois são eles o seu limite normativo de validade e aqueles que lhe conferem a sua razão de ser – a invocação de um critério sem o sustentar no princípio que o fundamenta resulta na invalidade deste primeiro.
Papel do julgador no contraponto entre fundamentos e critérios
No que toca ao Papel do Julgador, este tem como funções:
- Reconhecer as características que distinguem os fundamentos dos critérios, nomeadamente, o facto de, ao contrário dos critérios, os fundamentos não antecipam problemas nem fornecem soluções para os mesmos;
- Não desconsiderar os fundamentos ao procurar solucionar o problema jurídico. O 1o passo é procura critérios que permitem solucioná-lo e, se os tiver à sua disposição, experimentá-los tendo em conta a controvérsia em causa, mobilizando-os de modo a que a resposta por eles prescrita respeite as exigências dos fundamentos e, portanto, não frustre a validade comunitária. Assim, o julgador não deve caminhar em sentido oposto ao indicado pela luz do farol, mesmo que o mapa assim o proponha
As famílias romano-germânica (civil law) e anglo-saxónica (common law) são marcadas, ao nível das fontes do direito, por experiências polarizadoras distintas: o tipo de experiência polarizadora da primeira família é a legislação; da segunda, a jurisdição.
Um julgador inserido no sistema de civil law procurará em primeiro lugar uma norma legal; um julgador inserido no sistema de common law procurará primeiramente um precedente jurisdicional.