Envolvimento Renal nas Doenças Hematológicas Flashcards
ANEMIA FALCIFORME
Defenição e fisiopatologia
A anemia falciforme é uma doença genética na qual há uma substituição de ácido glutâmico por valina na sexta posição da cadeia beta da hemoglobina, resultando em uma molécula anormal, constando de duas cadeias alfa normais e duas cadeias beta defeituosas. A esta hemoglobina damos o nome de hemoglobina S (HbS).
A desordem falcêmica (doença SS) tem como características principais:
(1) anemia hemolítica, pela destruição esplênica precoce das hemácias alteradas; e
(2) fenômenos vaso-oclusivos, provocados pela polimerização da HbS.
Este fenômeno confere à hemácia, além de um formato distorcido (“afoiçamento”), uma grande tendência de se aderir ao endotélio vascular, o que provoca a obstrução de vasos na microcirculação.
O principal estímulo que deflagra a polimerização da HbS é a baixa tensão de oxigênio. Cada vez que as hemácias liberam O2 aos tecidos, a HbS se polimeriza, provocando imediato afoiçamento. A hemácia volta ao seu estado original logo após ser novamente oxigenada nos vasos pulmonares. Em determinadas circunstâncias, o fenômeno do afoiçamento é exacerbado, a ponto de provocar isquemia ou infarto tecidual por vaso-oclusão da microvasculatura.
A desidratação das hemácias, quando circulam em meios hipertônicos, e a ocorrência de infecções (estresse oxidativo) são os principais fatores precipitantes de fenômenos vaso-oclusivos na doença falciforme. Tais fenômenos resultam em episódios álgicos recorrentes e numa variedade de complicações em diversos sistemas orgânicos, que sofrem uma disfunção progressiva e trazem para o organismo grande morbidade, colocando muitas vezes a vida do paciente em risco.
ANEMIA FALCIFORME
Manifestações renais
O envolvimento renal é comum na anemia falciforme e pode se apresentar de diversas formas, desde distúrbios da concentração urinária (comprometimento tubulointersticial) até síndrome nefrótica com perda progressiva da função renal (comprometimento glomerular); o mais comum é que tenhamos um pouco de cada componente.
A doença, na verdade, afeta primariamente a microvasculatura renal, tendo como consequência a disfunção isquêmica tubular e a ocorrência de múltiplos infartos corticais e principalmente medulares. O envolvimento glomerular decorre, em parte, da isquemia cortical e, em parte, de uma condição de hiperfluxo renal de gênese ainda pouco conhecida.
ANEMIA FALCIFORME
Quais as formas de lesão renal? 5
1- Isquemia Medular Renal
2- Disfunção Tubular Distal
3- Hematúria e Necrose de Papila
4- Glomerulopatia Falcêmica
5- Carcinoma Medular
ANEMIA FALCIFORME
Isquemia Medular Renal
Fisiopatologia da lesão
A medula renal é a estrutura mais acometida!! Por oferecer um ambiente com baixa tensão de oxigênio (devido ao pobre suprimento vascular) e alta osmolaridade (hipertonicidade), o ambiente medular favorece a polimerização da HbS e, portanto, o afoiçamento de hemácias.
Histologicamente, o que se observa é congestão e estase nos capilares da vasa recta. Estas alterações proporcionam áreas focais de hemorragia e necrose, com subsequente inflamação intersticial e fibrose, atrofia tubular e infartos papilares. As lesões medulares também podem ser encontradas em indivíduos com traço falcêmico (heterozigotos para o gene da HbS).
ANEMIA FALCIFORME
Isquemia Medular Renal
Qual é a alteração urinária mais frequente?
Fisiopatologia
A alteração urinária mais comum da anemia falciforme vem do comprometimento quase universal da medula renal nesta doença. É a chamada ISOSTENÚRIA ou HIPOSTENÚRIA, presente desde o início da doença (aos 6-12 meses de idade).
A isquemia ou infarto da medula renal, decorrente do afoiçamento de hemácias, impede a formação de um interstício hiperosmolar, prejudicando a capacidade de concentração da urina. Desse modo, o paciente com anemia falciforme necessita naturalmente de uma maior ingesta de líquidos! Lembre-se: a desidratação predispõe à ocorrência de fenômenos vaso-oclusivos nesses pacientes…A isostenúria da anemia falciforme é reversível com a terapia transfusional até uma faixa etária próxima aos 15 anos; daí em diante, a lesão medular já costuma ser irreversível, tal como o distúrbio de concentração urinária.
É importante ressaltar que mesmo os pacientes que têm apenas o traço falcêmico (heterozigotos) apresentam isostenúria, mostrando que a medula renal é o tecido mais “sensível” nas doenças falciformes…
É comum o paciente com traço falcêmico ser totalmente assintomático, mas seu sedimento urinário mostrar uma densidade urinária baixa. O acometimento nesses casos geralmente é mais tardio e menos intenso do que nos pacientes com anemia falciforme.
O que é a ISOSTENÚRIA?
Como funciona o mecanismo de concentração urinária?
Podemos defini-la como uma osmolaridade urinária “fixa” e relativamente baixa (200-300 mOsm/L). A densidade varia na faixa entre 1.008-1.010. Com uma osmolaridade mais baixa, a urina encontra-se inapropriadamente diluída, gerando uma poliúria, com “urina clara”, semelhante à água.
Quando o fluido tubular alcança o túbulo coletor medular (último segmento do néfron), sua osmolaridade é baixa (100 mOsm/L). Para que a urina seja concentrada, a água deve ser reabsorvida neste segmento sem o acompanhamento de solutos, aumentando a osmolaridade da urina para até 800 1.200 mOsm/L (densidade em torno de 1.030). A água é reabsorvida (em presença do ADH) na tentativa de equilibrar a osmolaridade do fluido tubular com o interstício medular, que deve estar sempre hiperosmolar (800-1.200 mOsm/L). Quem garante a hiperosmolaridade do interstício medular é a reabsorção de solutos (NaCl), sem acompanhamento de H2O, na porção ascendente espessa da alça de Henle, processo que fica prejudicado na anemia falciforme, devido à isquemia medular.
Explicar a relação entre isostenúria e desidratação?
A diluição urinária normalmente acompanha a ingestão e a perda hídrica do paciente… Se um indivíduo bebe muita água, a sua urina TEM QUE ficar diluída, para que ele possa eliminar o excesso de líquido ingerido. Por outro lado, uma pessoa que está bebendo pouco líquido e aumenta as perdas (ex.: pelo suor), torna-se desidratada: agora a sua urina TEM QUE ficar concentrada e em menor quantidade (oligúria), um mecanismo fisiológico de conservação renal de água. O paciente que tem isostenúria, mesmo quando desidratado, tem sua urina relativamente diluída, pois ele perdeu o principal mecanismo de conservação hídrica renal: a habilidade de concentrar a urina, realizada graças à hipertonicidade medular. Por abolir o mecanismo de conservação da água, a própria isostenúria (secundária à lesão medular da anemia falciforme) predispõe à desidratação.
ANEMIA FALCIFORME
Disfunção Tubular Distal
A disfunção tubular distal é uma complicação descrita na anemia falciforme, manifestando-se como acidose tubular renal tipo I parcial.
Neste caso, há uma perda da capacidade de acidificar a urina (pH urinário inapropriadamente elevado), porém o paciente não chega a desenvolver acidose, mantendo o bicarbonato sérico normal.
A disfunção tubular prejudica também a secreção tubular de potássio, havendo uma tendência à hipercalemia.
ANEMIA FALCIFORME
Hematúria e Necrose de Papila
Tratamento
Manifestações clínicas
- *A hematúria indolor (microscópica ou macroscópica) é um achado frequente em indivíduos com anemia falciforme ou traço falcêmico. A lesão encontrada geralmente é uma úlcera localizada numa papila renal necrosada.** O sangramento renal é de pequena intensidade, mais comumente unilateral (à esquerda) e autolimitado.
- *Os casos graves são abordados com hidratação venosa abundante** (que reduz a osmolaridade da medula renal), uso de bicarbonato de sódio (a alcalinização retarda a polimerização da HbS) e transfusão sanguínea. Caso persista o sangramento, podemos utilizar um agente antifibrinolítico, como o Ácido Épsilon-Aminocaproico (EACA). Todo cuidado é pouco, uma vez que esta droga pode propiciar a formação de coágulos que obstruem o trato urinário.
A necrose de papila, detectada pela urografia excretora, é observada tanto na anemia falciforme quanto no traço falcêmico, sendo na maioria das vezes assintomática. Porém, os casos sintomáticos costumam ser dramáticos, evoluindo com hematúria macroscópica, dor lombar, febre, obstrução ureteral e pielonefrite bacteriana complicada.
ANEMIA FALCIFORME
Glomerulopatia Falcêmica
Que tipos de glomerulopatias existem relacionadas à anemia falciforme?
- Glomerulosclerose Focal e Segmentar (GEFS), do tipo secundária
- glomerulonefrite membranoproliferativa
- glomerulonefrite que se seguiram à crise aplástica pelo parvovírus B19
ANEMIA FALCIFORME
Glomerulopatia Falcêmica
Glomerulosclerose Focal e Segmentar
(GEFS)
Fisiopatologia
manifestações clínicas
prognóstico
Tratamento
A taxa de filtração glomerular e o fluxo sanguíneo cortical encontram-se elevados na criança e declinam ao longo do tempo, normalizando-se por volta dos 20 anos de idade. A partir desse momento, a filtração glomerular poderá cair progressivamente em um grupo de pacientes. O hiperfluxo e a hiperfiltração glomerular podem provocar Glomerulosclerose Focal e Segmentar (GEFS), do tipo secundária. Este é o tipo mais comum de glomerulopatia relacionado à anemia falciforme.
O fenômeno responsável pelo hiperfluxo renal é controverso, mas provavelmente tem como base uma isquemia medular crônica, o que levaria a um aumento na síntese de prostaglandinas e de Óxido Nítrico (NO) pelo endotélio capilar, ambas as substâncias vasodilatadoras.
Manifesta-se com proteinúria geralmente subnefrótica e eventualmente com a síndrome
nefrótica (em 40% dos casos). A função renal declina paulatinamente até que, ao longo de 10-15 anos, o paciente evolui para “estado de
rim terminal”, necessitando de diálise ou transplante.
Aproximadamente 4% de todos os pacien-tes com anemia falciforme e 2% dos portadores de traço falcêmico desenvolvem insuficiência renal, com idade média de 23 e 50 anos respectivamente.
A sobrevida média nesse momento é curta, oscilando em torno de quatro anos. Entre os pacientes falcêmicos acima de 40 anos, 60% apresentam proteinúria; e 30%, insuficiência renal. Hipertensão é um achado incomum.
O tratamento da fase proteinúrica está bem definido: baseia-se nos inibidores da ECA, drogas capazes de reduzir a pressão de filtração glomerular, controlando a proteinúria e reduzindo a progressão da nefropatia.
ANEMIA FALCIFORME
Glomerulopatia Falcêmica
glomerulonefrite membranoproliferativa
fisiopatologia
Outra forma de glomerulopatia na doença falciforme é a glomerulonefrite membranoproliferativa, com deposição de imunocomplexos no glomérulo.
Alguns trabalhos têm demonstrado que antígenos ainda “não revelados”, provenientes de isquemia tubular, ganhariam a circulação e seriam os responsáveis por tal resposta imunológica.
ANEMIA FALCIFORME
Glomerulopatia Falcêmica
glomerulonefrite que se seguiram à crise aplástica pelo parvovírus B19
prognóstico
Relatos recentemente publicados revelaram sete casos de glomerulonefrite que se seguiram à crise aplástica pelo parvovírus B19. Curiosamente, este micro-organismo não provoca doença renal em indivíduos sem hemoglobinopatias.
Somente em um destes pacientes a função renal recuperou-se completamente; a maioria desenvolveu, após o episódio agudo, falência renal progressiva com histologia compatível com glomerulosclerose focal e segmentar.
ANEMIA FALCIFORME
Carcinoma Medular
epidemioilogia
manifestações clinicas
prognostico
Este raríssimo tumor é praticamente exclusivo de pacientes com anemia falciforme ou traço falcêmico, especialmente negros.
Manifesta-se com hematúria, lombalgia, massa em flanco e emagrecimento.
O prognóstico é bastante reservado, com sobrevida média entre um e sete meses.
ANEMIA FALCIFORME
COMPROMETIMENTO RENAL NA ANEMIA FALCIFORME (7)