Revisão de processo estrutural Flashcards
Qual a origem histórica do chamado “processo estrutural”?
Caso Bronw v. Board of Education
Suprema Corte reconheceu as dificuldades de encerrar segregação
- Antes do caso Brown v. Board of Education, predominava nos Estados Unidos a doutrina “separate but equal” (Plessy v. Ferguson, 1896). No caso Brown, de 1954, a Suprema Corte revisitou o tema ao analisar a segregação racial em escolas e declarar a prática inconstitucional.
- A gênese do processo estrutural está na forma como a decisão foi implementada. Havia dúvidas se a decisão seria aceita e executada rapidamente, dado o ambiente racialmente tenso nos Estados Unidos (“decisões judiciais não mudam sentimentos sociais”) e os desafios práticos de sua implementação, como a necessidade de recursos materiais. Por isso, ao revisar a decisão alguns anos depois, no processo conhecido como Brown II, a Corte estabeleceu um plano flexível para sua implementação. A ideia era criar uma diretriz negociável, entendendo que o processo de dessegregação seria complexo e variável de acordo com as circunstâncias locais. Mesmo decidido, o processo não encontraria imediatamente o seu fim.
- Foi um momento-chave para entender que, mesmo quando um direito é reconhecido, o caminho para sua efetivação pode precisar de ajustes e negociações. Esta abordagem foi mais tarde identificada por Abram Chayes como a distinção entre “right” (direito) e “remedy” (solução), e é considerada uma pedra angular para o desenvolvimento do conceito de “processos estruturais” (ARENHART, 2022, cap. 1.2).
Falência e recuperação judicial são exemplos de processo estrutural?
Há semelhanças, mas não
A rigidez do procedimento de falência/recuperação o diferencia
- Falência e recuperação são situações complexas que ultrapassam o alcance do processo civil tradicional. Se crises empresariais fossem tratadas pelo processo civil comum, haveria uma corrida ao Judiciário de credores individuais, beneficiando os mais bem preparados técnica e financeiramente, e não aqueles que mais necessitam (GALANTER). Além disso, outros interesses sociais, como a continuidade das atividades empresariais, também estariam em risco.
- A Lei 11.101/2005 criou um mecanismo judicial específico para resolver crises empresariais, com a junção de todos os créditos perante um único juízo e todas as particularidades que regem o seu concurso. Essa é a mesma lógica que fundamenta o processo estrutural: a necessidade de novas abordagens processuais para resolver casos complexos de forma eficaz e justa (ARENHART, 2022, cap. 1.3.2).
- Apesar de atacarem a mesma classe de problemas, há uma diferença essencial entre o procedimento da falência/recuperação e o processo estrutural: a flexibilidade. A falência e a recuperação judicial foram concebidos sob fortes limitações, com cabimento em hipóteses específicas e com prevalência dos trâmites legais sobre a condução do juízo. Já o processo estrutural exige, para sua consecução, uma ampla liberdade do juízo na sua condução.
Qual a base normativa para o processo estrutural no Brasil?
Não há uma regra direta (ainda)
Princípios constitucionais e processuais, contudo, o amparam
- Não existe uma regra clara e direta que autorize o uso do processo estrutural na legislação brasileira. Ao contrário, para que ele funcione adequadamente, é necessário adaptar algumas regras processuais importantes, como os princípios da demanda e da congruência e a autoridade da coisa julgada, um passo que gera dúvidas sobre sua adequação ao sistema legal brasileiro.
- Apesar disso, a maioria dos estudiosos defende que as leis brasileiras atuais já suportam a aplicação do processo estrutural: (a) o princípio do devido processo legal em sua acepção material e da duração razoável do processo (art. 5º, XXXV, LIV, LV e LXXVIII, CF); (b) a flexibilidade processual introduzida pelo CPC atual, como nas medidas de cooperação entre juízes (arts. 67 e 69), na possibilidade de um calendário processual acordado (art. 191) e na maior liberdade para o juiz adaptar os prazos e o processo às necessidades do caso concreto (art. 139, VI). Avança ainda mais em direção à liberdade de condução com vistas a garantir sua efetividade ao permitir ao juiz “determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial” (art. 139, IV).
- Assim, o ambiente normativo atual favorece a flexibilidade e criatividade judiciais, tornando o sistema mais apto para lidar com os processos estruturais e sua necessidade de um design processual mais adaptável. (ARENHART, 2022, cap. 1.3.3).
Quais são as quatro principais características do processo estrutural?
Na verdade, do problema estrutural
Complexidade, multipolaridade…
… recomposição institucional e prospectividade
- O processo estrutural não é um rito ou processo específico, mas uma forma de abordagem do processo focada em resolver questões sistêmicas ou estruturais. O que o justifica e o que o define, portanto, são características dos problemas que procura resolver, pois são elas que tornam necessária a condução estrutural do processo. Estudar as características dos problemas é, portanto, estudar as características do próprio processo estrutural.
- Segundo a doutrina, são quatro as principais características dos problemas estruturais: complexidade, multipolaridade, necessidade de recomposição institucional e prospectividade.
- Nem todos os casos que demandam atuação estrutural terão as mesmas características. Mesmo assim, isso não os desqualifica como estruturais. A ausência de uma característica específica pode simplesmente indicar que uma ferramenta processual particular não é necessária, enquanto outras ainda podem ser aplicadas.
O que é a complexidade dos problemas estruturais?
Qualquer intervenção o modifica sensivemente
Lembra sistemas caóticos; isso leva à imprevisibilidade
- “Complexidade”, aqui, não se refere a algo difícil de entender ou resolver. O conceito é emprestado das ciências naturais e descreve sistemas onde a ordem surge sem um controle central, onde “a estrutura emerge espontaneamente como resultado de interações entre os elementos componentes” (MURRAY apud ARENHART, 2022, cap. 2.1.1).
- A natureza complexa dos problemas estruturais desafia as abordagens tradicionais do direito. Esses problemas não seguem uma linha clara de causa e efeito e envolvem muitas variáveis imprevisíveis (KANIA e KRAMER, 2013). Portanto, soluções não podem ser determinadas antecipadamente e requerem interações contínuas.
- Ademais, nenhum ator isolado pode resolver um problema complexo. Mesmo com boas intenções, esforços isolados de ONGs, atores privados ou do governo são inadequados para abordar a complexidade desses problemas (ARENHART, 2022, cap. 2.1.1).
Como a complexidade dos problemas estruturais afeta a atuação do Judiciário?
Articulação, extrapolação e adaptação
Papel articulador, extrapolação dos fatos e provas, adaptar soluções
- O Judiciário deve assumir um papel articulador e fiscalizador, em vez de impor soluções diretas. A tarefa de elaborar programas e etapas para resolver o problema cabe aos envolvidos, enquanto o Judiciário incentiva o debate e monitora a execução (ARENHART, 2022, cap. 2.1.2).
- No processo tradicional, vale o brocardo do direito romano: “quod non est in actis non est in mundo” (o que não está nos autos não está no mundo). Como o impacto da decisão se limita às partes envolvidas, o Judiciário atua com base em uma versão simplificada da realidade e se concentra apenas no “objeto litigioso” definido pelas partes. Entretanto, a complexidade dos conflitos estruturais requer uma atuação contínua e mais abrangente, por vezes extrapolando os fatos e provas apresentados pelas partes.
- O papel do Judiciário se torna mais extenso e permanente. As soluções adotadas devem ser revisitadas para adaptá-las conforme necessário, dada a imprevisibilidade dos sistemas complexos.
O que é a multipolaridade dos problemas estruturais?
Convergência de interesses
Não há a dicotomia autor/réu, mas diversos interesses convergentes
- A “multipolaridade” é outra característica marcante de problemas estruturais. Não se trata da mera cumulação subjetiva (diversos autores ou réus em uma mesma ação), mas a convergência de interesses entre diferentes sujeitos, nem sempre presentes em um mesmo processo, todos relevantes para o processo. Exemplos incluem o incidente de resolução de demandas repetitivas e as súmulas vinculantes, que resolvem questões comuns a diferentes controvérsias de maneira concentrada (ARENHART, 2022, cap. 2.2.1).
- Essa multipolaridade é comum em litígios coletivos, especialmente quando se discutem políticas públicas ou se buscam soluções estruturais. Em tais cenários, dividir os interesses em apenas dois pólos antagônicos (autor e réu) poderia até mesmo comprometer a legitimidade da decisão judicial.
O que é a necessidade de recomposição institucional, que marca os problemas estruturais?
Não só decidir, mas modificar estruturas
Não basta dizer quem tem razão, tem que modificar o sistema
- A recomposição institucional refere-se ao papel ativo que o Poder Judiciário deve assumir para modificar ou adaptar estruturas existentes que impedem a plena realização de determinados direitos ou interesses jurídicos. Owen Fiss, um estudioso do tema, argumenta que o Judiciário tem assumido funções além da simples resolução de disputas (adjudication). Em casos como o sistema prisional e segregação racial nas escolas, seu papel inclui realizar mudanças significativas e profundas nas estruturas existentes para garantir valores públicos.
- Segundo Fiss, essa “reforma estrutural” é necessária por duas razões principais: **(a) ** a ameaça aos valores constitucionais vem de organizações de grande escala, e não apenas de indivíduos; (b) sem a reestruturação dessas organizações, as ameaças aos valores constitucionais persistirão.
- Então, “recomposição institucional”, no contexto de processos estruturais, é o termo usado para descrever essa necessidade de adaptar ou reformular instituições como parte do processo judicial estrutural. Isso implica um papel mais ativo e criativo para o Judiciário, indo além da mera resolução de disputas para abordar as causas subjacentes e as estruturas que perpetuam problemas sociais e jurídicos.
O que é a prospectividade, que marca os problemas estruturais?
Orientação para o futuro
Processo comum olha pro passado; estrutural, para o futuro
O termo “prospectividade” no contexto dos processos estruturais refere-se à orientação para o futuro da atividade jurisdicional. Diferente de casos tradicionais, onde a decisão judicial busca resolver um conflito passado ou presente, em processos estruturais a decisão tem uma visão voltada para o futuro. O objetivo é promover mudanças de comportamento gerais e continuadas e, por isso, a decisão não se limita a sanar uma controvérsia específica, mas procura estabelecer novos padrões ou normas que influenciarão casos futuros
Quais são as quatro principais críticas à prospectividade no processo estrutural?
Incerteza, equidade intergeracional
Separação de poderes e participação/transparência das decisões
- Complexidade e Incerteza: A prospectividade envolve a tomada de decisões em ambientes de incerteza e complexidade, exigindo uma avaliação cuidadosa dos riscos e benefícios.
- Equidade Intergeracional: Ao considerar o impacto a longo prazo das decisões, o Judiciário pode também abordar questões de equidade entre gerações diferentes.
- Balanceamento de Poderes: Embora a prospectividade permita ao Judiciário desempenhar um papel mais ativo, é crucial manter um equilíbrio com os outros poderes do Estado para não usurpar funções que são, constitucionalmente, de outros ramos do governo.
- Participação e Transparência: Dada a natureza de longo prazo das decisões prospectivas, é essencial garantir um processo decisório transparente e inclusivo, que permita a participação de todas as partes interessadas.
De que forma a multipolaridade desafia a concepção tradicional da dimensão subjetiva do processo?
Cinza, e não preto-e-branco
Desafia o maniqueísmo da ideia de autor/réu, de interesses antagônicos
- O processo estrutural se caracteriza pela presença de múltiplos interesses e atores (multipolaridade). Aqui, a disputa vai além da tradicional oposição entre autor e réu. Em vez de um conflito direto entre “A” e “B”, encontramos uma teia complexa de sujeitos com interesses e opiniões variados, que podem ser tanto convergentes quanto divergentes e que podem mudar de posição ao longo do processo.
- Nesse cenário, o conflito não é constante nem inevitável. Muitas vezes, os sujeitos envolvidos concordam sobre a necessidade de resolver o problema, mas discordam quanto à melhor solução, ao tempo para resolvê-lo ou a outros detalhes.
- Essa característica exige um procedimento adaptado, pois o modelo tradicional, que simplesmente opõe autor a réu, é inadequado. Além disso, identificar com precisão os atores relevantes e seus respectivos interesses pode ser um desafio.
- Por último, esse tipo de processo é dinâmico e fluido. As opiniões e percepções dos envolvidos podem mudar à medida que o caso avança.