Jurisprudência 2019 Flashcards

1
Q

O réu tem direito ao regime aberto se o juiz cogitar aplicar-lhe o princípio da insignificância?

A

A reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto. No entanto, com base no caso concreto, o juiz pode entender que a absolvição com base nesse princípio é penal ou socialmente indesejável. Nesta hipótese, o magistrado condena o réu, mas utiliza a circunstância de o bem furtado ser insignificante para fins de fixar o regime inicial aberto. Desse modo, o juiz não absolve o réu, mas utiliza a insignificância para criar uma exceção jurisprudencial à regra do art. 33, § 2º, “c”, do CP, com base no princípio da proporcionalidade STF. 1ª Turma. HC 135164/MT, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 23/4/2019 (Info 938).

Na hipótese de o juiz da causa considerar penal ou socialmente indesejável a aplicação do princípio da insignificância por furto, em situações em que tal enquadramento seja cogitável, eventual sanção privativa de liberdade deverá ser fixada, como regra geral, em regime inicial aberto, paralisando-se a incidência do art. 33, pár. 2, do CP no caso concreto, com base no princípio da proporcionalidade. (INFO 793)

§ 2º - As penas privativas de liberdade deverão ser executadas em forma progressiva, segundo o mérito do condenado, observados os seguintes critérios e ressalvadas as hipóteses de transferência a regime mais rigoroso: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

a) o condenado a pena superior a 8 (oito) anos deverá começar a cumpri-la em regime fechado;

b) o condenado não reincidente, cuja pena seja superior a 4 (quatro) anos e não exceda a 8 (oito), poderá, desde o princípio, cumpri-la em regime semi-aberto;

c) o condenado não reincidente, cuja pena seja igual ou inferior a 4 (quatro) anos, poderá, desde o início, cumpri-la em regime aberto.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
2
Q

Se o agente delito é reincidente, mas o valor do bem furto é bastante diminuto, o que deve fazer o juiz?

A

Em regra, o reconhecimento do princípio da insignificância gera a absolvição do réu pela atipicidade material. Em outras palavras, o agente não responde por nada.

Em um caso concreto, contudo, o STF reconheceu o princípio da insignificância, mas, como o réu era reincidente, em vez de absolvê-lo, o Tribunal utilizou esse reconhecimento para conceder a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, afastando o óbice do art. 44, II, do CP:

Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: (…) II – o réu não for reincidente em crime doloso;

STF. 1ª Turma. HC 137217/MG, Rel. Min. Marco Aurélio, red. p/ ac. Min. Alexandre de Moraes, julgado em 28/8/2018 (Info 913).

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
3
Q

O princípio da insignificância pode ser reconhecido após o trânsito em julgado?

A

Sim (HC 95570).

Habeas corpus. Penal. Decisão transitada em julgado. Possibilidade de impetração de habeas corpus. Precedentes. Crime de descaminho. Princípio da insignificância. Possibilidade. Precedentes. Ordem concedida. 1. A jurisprudência desta Suprema Corte consolidou-se no sentido de que “a coisa julgada estabelecida no processo condenatório não é empecilho, por si só, à concessão de habeas corpus por órgão jurisdicional de gradação superior, de modo a desconstituir a decisão coberta pela preclusão máxima” (RHC nº 82.045/SP, Primeira Turma, Relator o Ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 25/10/02). 2. Nos termos da jurisprudência deste Supremo Tribunal, o princípio da insignificância deve ser aplicado no delito de descaminho quando o valor sonegado for inferior ao montante mínimo de R$ 10.000,00 (dez mil reais) legalmente previsto no art. 20 da Lei n° 10.522/02, com a redação dada pela Lei nº 11.033/04. 3. Ordem concedida.
(HC 95570, Relator(a): DIAS TOFFOLI, Primeira Turma, julgado em 01/06/2010, DJe-159 DIVULG 26-08-2010 PUBLIC 27-08-2010 EMENT VOL-02412-01 PP-00185)

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
4
Q

O princípio da insignificância é aplicável para crimes contra a ordem tributária?

A

SIM.

No caso de descaminho (que também é um crime contra a ordem tributária, embora previsto no CP) também.

Limite: R$ 20.000,00 (Info 622).

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
5
Q

Aplica-se o princípio da insignificância para o porde de munição de arma de fogo?

A

O atual entendimento do do STJ é no sentido de que a apreensão de pequena quantidade de munição, desacompanhada da arma de foto, permite a aplicação do princípio da insignificância ou bagatela (HC 517.099).

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
6
Q

Aplica-se o princípio da insignificância ao crime de contrabando?

A

Em regra, é inaplicável o princípio da insignificância ao crime de contrabando, uma vez que o bem juridicamente tutelado vai além do mero valor pecuniário do imposto elidido, alcançado também o interesse estatal de impedir a entrada e a comercialização de produtos proibidos em território nacional. Trata-se, assim, de um delito pluriofensivo. (AgRg no REsp 1744739).

Vale ressaltar, no etanto, que o STJ possui alguns precedentes admitindo, de forma excepcional, a aplicação deste princípio para o caso de contrabando de pequena quantidade de medicamento para uso próprio:

A importação de pequena quantidade de medicamento destinada a uso próprio denota a mínima ofensividade da conduta do agente, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica provocada, tudo a autorizar a excepcional aplicação do princípio da insignificância (EDcl no AgRg no REsp 1708371).

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
7
Q

Pode-se aplicar o princípio da insignificância ao crime de estilionato contra o INSS?

A

Não. Conduta reprovável, dado que pode agravar o déficit da previdência.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
8
Q

O princípio da insignificância é aplicável ao tráfico de drogas?

A

Resumo

  • O entendimento que vinha prevalecendo na jurisprudência era pela não aplicação.
  • Num placar apertado (3x2), a 2 Turma do STF, em caso relativo ao tráfico de 1 grama de maconha, resolveu aplicar o princípio.
  • Ministro Gilmar Mendes afirmou que a jurisprudência deve avançar na criação de critérios objetivos para separar o traficante de grante pote do traficante de pequenas quantidades, que vende drogas apenas em razão de seu próprio vício.

CONJUR:

Não haverá crime quando o comportamento não for suficiente para causar um dano, ou um perigo efetivo de dano, ao bem jurídico. O entendimento foi fixado, por maioria, em julgamento virtual pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal.

No caso, uma mulher foi condenada à pena de 6 anos, 9 meses e 20 dias de reclusão, em regime inicialmente fechado, pela posse de 1 grama de maconha, sem indícios de que a mulher teria anteriormente comercializado maior quantidade de droga.

Prevaleceu entendimento do relator, ministro Gilmar Mendes. Para ele, a jurisprudência deve avançar no sentido de criar critérios dogmáticos objetivos para separar o traficante de grande porte do traficante de pequenas quantidades, que vende drogas apenas para retroalimentar o seu vício.

“Nos parece que a adoção do princípio da insignificância nos crimes de tráfico de drogas se revela um passo importante nessa direção. No caso, não se pode dizer que o oferecimento da pena, por parte do Estado, se revele como uma resposta adequada, nem tampouco necessária, para repelir o tráfico de 1 g de maconha. Em um controle da proporcionalidade em sentido estrito, ainda, salta aos olhos a desproporcionalidade do oferecimento de tal pena”, disse.

Além disso, segundo Gilmar, o caso em análise é um exemplo “emblemático da flagrante desproporcionalidade da própria pena em abstrato prevista para o tipo penal do tráfico de drogas diante de casos em que a quantidade de entorpecentes é irrisória”.

“A solução aqui proposta, para tais casos de flagrante desproporcionalidade entre a lesividade da conduta e a reprimenda estatal oferecida, é a adoção do princípio da insignificância no âmbito dos crimes de tráfico de drogas”, afirmou.

Para o ministro, a doutrina constitucional mais moderna enfatiza que, em se tratando de imposição de restrições a determinados direitos, “deve-se indagar não apenas sobre a admissibilidade constitucional da restrição eventualmente fixada, mas também sobre a compatibilidade das restrições estabelecidas com o princípio da proporcionalidade”.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
9
Q

Condenações anteriores podem ser utilizadas como fundamento para majorar a pena base com fundamento na “conduta social”? E quanto à personalidade?

A

Eventuais condenações criminais do réu transitadas em julgado e não utilizadas para caracterizar a reincidência somente podem ser valoradas, na primeira fase da dosimetria, a título de antecedentes criminais, não se admitindo sua utilização também para desvalorar a personalidade ou a conduta social do agente.

A conduta social e a personalidade do agente não se confundem com os antecedentes criminais, porquanto gozam de contornos próprios - referem-se ao modo de ser e agir do autor do delito -, os quais não podem ser deduzidos, de forma automática, da folha de antecedentes criminais do réu. Trata-se da atuação do réu na comunidade, no contexto familiar, no trabalho, na vizinhança (conduta social), do seu temperamento e das características do seu caráter, aos quais se agregam fatores hereditários e socioambientais, moldados pelas experiências vividas pelo agente (personalidade social).

Já a circunstância judicial dos antecedentes se presta eminentemente à análise da folha criminal do réu, momento em que eventual histórico de múltiplas condenações definitivas pode, a critério do julgador, ser valorado de forma mais enfática, o que, por si só, já demonstra a desnecessidade de se valorar negativamente outras condenações definitivas nos vetores personalidade e conduta social. STJ. 3ª Seção. EAREsp 1.311.636-MS, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 10/04/2019 (Info 947).

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
10
Q

Confessando o réu o consumo de drogas, mas não a traficância, pode ser reconhecida a atenuante da confissão espontânea caso ele seja condenado pelo delito de tráfico de drogas?

A

Resumo

Súmula 630-STJ: A incidência da atenuante da confissão espontânea no crime de tráfico ilícito de entorpecentes exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, não bastando a mera admissão da posse ou propriedade para uso próprio.

Dizer o direito

Confissão parcial

A confissão parcial ocorre quando o réu confessa apenas parcialmente os fatos narrados na denúncia. Ex.: o réu foi denunciado por furto qualificado pelo rompimento de obstáculo (art. 155, § 4º, I, do CP). Ele confessa a subtração do bem, mas nega que tenha arrombado a casa.

Se a confissão foi parcial e o juiz a considerou no momento da condenação, este magistrado deverá fazer incidir a atenuante na fase da dosimetria da pena?

SIM. Se a confissão, ainda que parcial, serviu de suporte para a condenação, ela deverá ser utilizada como atenuante (art. 65, III, “d”, do CP) no momento de dosimetria da pena.

Incide a atenuante prevista no art. 65, III, “d”, do CP, independe se a confissão foi integral ou parcial, quando o magistrado a utilizar para fundamentar a condenação.

Mesmo nas hipóteses de confissão qualificada ou parcial, deve incidir a atenuante prevista no art. 65. III, “d”, do Código Penal, se os fatos narrados pelo autor influenciaram a convicção do julgador.

Essa é a inteligência da Súmula 545 do STJ.

STJ. 5ª Turma. HC 450.201/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 21/03/2019.

Confissão qualificada

A confissão qualificada ocorre quando o réu admite a prática do fato, no entanto, alega em sua defesa um motivo que excluiria o crime ou o isentaria de pena. Ex: eu matei sim, mas foi em legítima defesa.

Obs: por serem muito próximos os conceitos, alguns autores apresentam a confissão parcial e a qualificada como sinônimas.

Se a confissão foi qualificada e o juiz a considerou no momento da condenação, este magistrado deverá fazer incidir a atenuante na fase da dosimetria da pena?

Para o STJ: SIM. Não é possível desmerecer a confissão daquele que efetivamente contribui para a elucidação dos fatos supostamente delituosos, ainda que agregando teses defensivas.

Nos casos em que a confissão do acusado servir como um dos fundamentos para a condenação, deve ser aplicada a atenuante em questão, pouco importando se a confissão foi espontânea ou não, se foi total ou parcial, ou mesmo se foi realizada só na fase policial, com posterior retratação em juízo.

Quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no art. 65, III, “d”, do Código Penal (Súmula 545/STJ), sendo indiferente que a admissão da autoria criminosa seja parcial, qualificada ou acompanhada de alguma causa excludente de ilicitude ou culpabilidade.

STJ. 5ª Turma. HC 450.201/SP, Rel. Min. Jorge Mussi, julgado em 21/03/2019.

STJ. 6ª Turma. AgInt no REsp 1775963/MG, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 07/05/2019.

Obs: o STF possui julgados em sentido contrário. Veja: (…) A confissão qualificada não é suficiente para justificar a atenuante prevista no art. 65, III, “d”, do Código Penal (…) STF. 1ª Turma. HC 119671, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 05/11/2013.

Como o último julgado do STF sobre o tema é relativamente antigo (2013), em provas, é mais provável que seja cobrado o entendimento do STJ. Fique atenta(o), contudo, à redação do enunciado.

Confissão retratada

A chamada confissão retratada ocorre quando o agente confessa a prática do delito e, posteriormente, se retrata, negando a autoria. Ex: durante o inquérito policial, João confessa o crime, mas em juízo volta atrás e se retrata, negando a imputação e dizendo que foi torturado pelos policiais. O agente confessa na fase do inquérito policial e, em juízo, se retrata, negando a autoria. O juiz condena o réu fundamentando sua sentença, dentre outros argumentos e provas, na confissão extrajudicial.

Se a confissão foi retratada e o juiz a considerou no momento da condenação, este magistrado deverá fazer incidir a atenuante na fase da dosimetria da pena?

Para o STJ: SIM.

Se a confissão do réu foi utilizada para corroborar o acervo probatório e fundamentar a condenação, deve incidir a atenuante prevista no art. 65, III, “d”, do Código Penal, sendo irrelevante o fato de que tenha havido posterior retratação, ou seja, que o agente tenha voltado atrás e negado o crime. STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1712556/SP, Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 11/06/2019.

Obs: existem alguns julgados do STF em sentido contrário: a retratação em juízo da anterior confissão policial obsta a invocação e a aplicação obrigatória da circunstância atenuante referida no art. 65, inc. III, alínea ‘d’, do Código Penal (STF. 2ª Turma. HC 118375, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 08/04/2014.

Em suma, na sentença, o juiz poderá utilizar a confissão parcial, a confissão qualificada ou a confissão com retratação posterior para, em conjunto com outras provas, condenar o réu?

SIM.

Neste caso, o juiz deverá aplicar a atenuante do art. 65, III, “d”, do CP?

SIM. Para o STJ, é irrelevante que a confissão tenha sido parcial ou total, condicionada ou irrestrita, com ou sem retratação posterior. Se a confissão foi utilizada pelo juiz como fundamento para a condenação, deverá incidir a atenuante do art. 65, III, “d”, do Código Penal.

Entendimento sumulado

O STJ resumiu seus entendimentos sobre a confissão com a súmula 545:

Súmula 545-STJ: Quando a confissão for utilizada para a formação do convencimento do julgador, o réu fará jus à atenuante prevista no artigo 65, III, d, do Código Penal.

CONFISSÃO, TRÁFICO DE DROGAS E POSSE DE DROGAS PARA CONSUMO PRÓPRIO

João foi preso, em uma viagem de ônibus, com uma grande quantidade de cocaína em sua mochila.

O Ministério Público denunciou João pela prática do crime do art. 33 da Lei nº 11.343/2006.

No interrogatório, João admitiu que a droga era sua, mas alegou que ela seria utilizada exclusivamente para seu próprio consumo. Disse, em suma, que é usuário de drogas, afirmando ter adquirido o entorpecente em grande quantidade para evitar ter que ir várias vezes à “boca-de-fumo”. A defesa alegou que João deveria ser condenado pela prática do crime previsto no art. 28 da Lei nº 11.343/2006:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I - advertência sobre os efeitos das drogas;

II - prestação de serviços à comunidade;

III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

O juiz, contudo, não acolheu o pedido e condenou o réu por tráfico de drogas, nos termos do art. 33:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena - reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Suponhamos que, na sentença, havia um trecho dizendo o seguinte: “não há dúvidas de que a droga pertencia ao acusado, considerando que ele próprio confessa que a bolsa sua”. Neste caso, como o réu admitiu a propriedade da droga, ele terá direito à atenuante da confissão espontânea ao ser condenado por tráfico?

NÃO. Isso porque ele confessou a posse da droga para fins de consumo (e não para tráfico).

A atenuante da confissão espontânea pressupõe que o réu reconheça a autoria do fato típico que lhe é imputado. Ocorre que, no caso, o réu não admitiu a prática do tráfico, pois afirmou que a droga era exclusivamente para seu consumo próprio, numa clara tentativa de desclassificar a sua conduta para o crime do art. 28 da Lei nº 11.343/2006.

Nesse caso, em que se nega a prática do tipo penal apontado na peça acusatória, não é possível o reconhecimento da circunstância atenuante.

Para o STJ, não incide a atenuante da confissão espontânea quando o réu não admite a autoria do exato fato criminoso que lhe é imputado:

O reconhecimento da atenuante genérica prevista no art. 65, III, “d”, do Código Penal exige que o réu confesse os fatos pelos quais está sendo devidamente processado. STJ. 6ª Turma. HC 326.526/MS, Rel. Min. Antonio Saldanha Palheiro, julgado em 04/04/2017.

Em se tratando do crime de tráfico de entorpecentes, a confissão espontânea do acusado que admite a propriedade da droga, no entanto afirma ser destinada a consumo próprio, sendo mero usuário, impossibilita o reconhecimento da atenuante prevista no art. 65, inciso III, alínea “d”, do Código Penal. STJ. 5ª Turma. HC 488.991/PR, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 26/03/2019.

[…]

Vale ressaltar que não se pode dizer que houve confissão parcial neste caso porque o réu admitiu a prática de um fato diferente:

(…) a incidência da atenuante da confissão espontânea, prevista no art. 65, III, alínea d, do Código Penal, no crime de tráfico ilícito de entorpecentes exige o reconhecimento da traficância pelo acusado, não sendo apta para atenuar a pena a mera admissão da propriedade para uso próprio. Nessa hipótese, inexiste, nem sequer parcialmente, o reconhecimento do crime de tráfico de drogas, mas apenas a prática de delito diverso. (…) STJ. 5ª Turma. AgRg no AREsp 1408971/TO, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 07/05/2019.

Não confundir:

Confissão parcial: Réu confessa apenas parcialmente os fatos narrados na denúncia.

Ex.: réu foi acusado de furto qualificado; confessa a prática do furto, mas nega a qualificadora do rompimento de obstáculo. Deverá incidir a atenuante da confissão espontânea (STJ HC 328.021-SC).

Réu confessa a prática de outro tipo penal diverso daquele narrado na denúncia:

Ex.: réu é acusado de tráfico de drogas (art. 33 da LD); ele confessa que a droga era sua, negando, porém, a traficância. Isso significa que ele confessou a prática de um outro crime, qual seja, o porte para consumo pessoal (art. 28 da LD). Não deverá incidir a atenuante da confissão espontânea, considerando que o réu não reconheceu a autoria do fato típico imputado.

[…]

O entendimento da súmula 630 do STJ não é aplicável para situações envolvendo roubo e furto

Ministério Público oferece denúncia contra o acusado imputando-lhe a prática de roubo.

O réu se defende admitindo a subtração, mas negando o emprego de violência ou grave ameaça.

Em outras palavras, o acusado admitiu a prática de um furto (e não de roubo).

Nesses casos, o STJ tem admitido a incidência da atenuante afirmando que se está diante de confissão parcial:

Embora a simples subtração configure crime diverso - furto -, também constitui uma das elementares do delito de roubo - crime complexo, consubstanciado na prática de furto, associado à prática de constrangimento, ameaça ou violência, daí a configuração de hipótese de confissão parcial. STJ. 5ª Turma. HC 299.516/SP, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 21/06/2018. STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 452.897/SP, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, julgado em 07/08/2018.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
11
Q

No caso em que a sentença é confirmada por acordão, a redução do prazo prescricional prevista no art. 115 do CP pode ser aplicada se o atingimento de idade superior a 70 anos ocorreu depois da sentença?

Art. 115 - São reduzidos de metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, ao tempo do crime, menor de 21 (vinte e um) anos, ou, na data da sentença, maior de 70 (setenta) anos.(Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

A

Por expressa previsão do art. 115 do CP, são reduzidos pela metade os prazos de prescrição quando o criminoso era, na data da sentença, maior de 70 anos. O termo sentença deve ser compreendido como a primeira decisão condenatória, seja sentença ou acórdão proferido em apelação.

A redução do prazo prescricional prevista no art. 115 do CP não se relaciona com as causas interruptivas da prescrição previstas no art. 117 do mesmo diploma legal, tratando-se de fenômenos distintos e que repercutem de maneira diversa. STJ. 6ª Turma. HC 316.110-SP, Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 25/06/2019 (Info 652).

Obs: vale ressaltar que existem alguns poucos julgados da 6ª Turma do STJ admitindo a aplicação do art. 115 do CP caso o acórdão tenha confirmado a condenação, mas tenha também modificado substancialmente a sentença a ponto de ser considerado um novo édito condenatório. Confira: Havendo substancial modificação da sentença pelo acórdão, que não apenas aumentou o quantum de pena, mas também o próprio lapso prescricional, além de modificar a tipificação conferida ao fato, deve o acórdão ser considerado como novo marco interruptivo da prescrição, inclusive para fins de aplicação do benefício do art. 115 do Código Penal (STJ. 6ª Turma. AgRg no REsp 1481022/RS, Rel. p/ Acórdão Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 18/09/2018).

Art. 117 - O curso da prescrição interrompe-se: (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

I - pelo recebimento da denúncia ou da queixa; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

II - pela pronúncia; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

III - pela decisão confirmatória da pronúncia; (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

IV - pela publicação da sentença ou acórdão condenatórios recorríveis; (Redação dada pela Lei nº 11.596, de 2007).

V - pelo início ou continuação do cumprimento da pena; (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

VI - pela reincidência. (Redação dada pela Lei nº 9.268, de 1º.4.1996)

§ 1º - Excetuados os casos dos incisos V e VI deste artigo, a interrupção da prescrição produz efeitos relativamente a todos os autores do crime. Nos crimes conexos, que sejam objeto do mesmo processo, estende-se aos demais a interrupção relativa a qualquer deles. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

§ 2º - Interrompida a prescrição, salvo a hipótese do inciso V deste artigo, todo o prazo começa a correr, novamente, do dia da interrupção. (Redação dada pela Lei nº 7.209, de 11.7.1984)

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
12
Q

O indulto atinge os efeitos secundários da sentença penal?

A

Súmula 631-STJ: O indulto extingue os efeitos primários da condenação (pretensão executória), mas não atinge os efeitos secundários, penais ou extrapenais. STJ. 3ª Seção. Aprovada em 24/04/2019, DJe 29/04/2019.

Indulto extingue apenas os efeitos principais da condenação

O indulto extingue apenas os efeitos primários da condenação (pretensão executória).

Dito de forma bem simples: o indulto extingue somente a pena ou a medida de segurança. O indulto não atinge os efeitos secundários (penais ou extrapenais):

A concessão do indulto afasta o efeito principal decorrente da condenação, qual seja, o próprio cumprimento da pena anteriormente fixada pela sentença condenatória. No entanto, os efeitos secundários da condenação, tais como aqueles elencados no art. 91 do Código Penal, mas não a eles restritos, não são afetados pela concessão do indulto, ante a inexistência de previsão legal neste sentido, restando mantidas, assim, as devidas anotações junto aos cartórios e ofícios distribuidores acerca da existência do feito. STJ. 5ª Turma. AgInt no RHC 66.190/PR, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 12/03/2019.

A extinção da punibilidade pelo indulto não afasta os efeitos da condenação, dentre eles a reincidência, uma vez que só atinge a pretensão executória. STJ. 6ª Turma. AgRg no HC 409.588/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, julgado em 12/12/2017.

Exemplos de situações que não serão afetadas mesmo tendo havido o indulto:

  • as anotações do crime continuarão nos cartórios e ofícios distribuidores;
  • nome do condenado continua incluído no “rol dos culpados”;
  • a condenação que foi objeto de indulto continua tendo força para gerar reincidência (a reincidência não é afastada com a concessão do indulto);
  • se o indivíduo havia sido condenado a perder bens e valores, o indulto não irá alterar isso;
  • condenado continua com a obrigação de indenizar a vítima.

Não confundir:

ANISTIA

Extingue o efeito primário da condenação (pretensão executória

Extingue também os efeitos secundários penais da condenação (ex: reincidência).

Não extingue os efeitos secundários extrapenais da condenação (ex: tornar certa a obrigação de indenizar, perda da função pública). Os efeitos de natureza civil permanecem íntegros.

GRAÇA E INDULTO

Extingue o efeito primário da condenação (pretensão executória).

NÃO extingue os efeitos secundários penais da condenação.

NÃO extingue os efeitos secundários extrapenais da condenação (ex: tornar certa a obrigação de indenizar, perda da função pública). Os efeitos de natureza civil permanecem íntegros.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
13
Q

O pagamento do débito oriundo de furto de energia elétrica antes do recebimento da denúncia é causa de extinção da punibilidade?

A

Resumo

  • No caso de furto de energia elétrica mediante fraude, o adimplemento do débito antes do recebimento da denúncia não extingue a punibilidade.
  • Inaplicabilidade do art. 9 da Lei n. 10.684\2003 e do art. 83 da Lei n. 9.430\96, incluído pela Lei 12.382\2011.

Jurisprudência

O furto de energia elétrica não pode receber o mesmo tratamento dado ao inadimplemento tributário, de modo que o pagamento do débito antes do recebimento da denúncia não configura causa extintiva de punibilidade, mas causa de redução de pena relativa ao arrependimento posterior (art. 16 do CP). Isso porque nos crimes contra a ordem tributária, o legislador (Leis nº 9.249/1995 e nº 10.684/2003), ao consagrar a possibilidade da extinção da punibilidade pelo pagamento do débito, adota política que visa a garantir a higidez do patrimônio público, somente. A sanção penal é invocada pela norma tributária como forma de fortalecer a ideia de cumprimento da obrigação fiscal.

Já nos crimes patrimoniais, como o furto de energia elétrica, existe previsão legal específica de causa de diminuição da pena para os casos de pagamento da “dívida” antes do recebimento da denúncia. Em tais hipóteses, o Código Penal, em seu art. 16, prevê o instituto do arrependimento posterior, que em nada afeta a pretensão punitiva, apenas constitui causa de diminuição da pena.

Outrossim, a jurisprudência se consolidou no sentido de que a natureza jurídica da remuneração pela prestação de serviço público, no caso de fornecimento de energia elétrica, prestado por concessionária, é de tarifa ou preço público, não possuindo caráter tributário. Não há como se atribuir o efeito pretendido aos diversos institutos legais, considerando que o disposto no art. 34 da Lei nº 9.249/1995 e no art. 9º da Lei nº 10.684/2003 fazem referência expressa e, por isso, taxativa, aos tributos e contribuições sociais, não dizendo respeito às tarifas ou preços públicos. STJ. 5ª Turma. HC 412.208-SP, Rel. Min. Felix Fischer, julgado em 20/03/2018 (Info 622).

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
14
Q

Que crime caracteriza a adulteração de sistema de medição de energia elétrica para pagar menos que o devido?

A

Resumo

  • A alteração do sistema de medição, mediante fraude, para que aponte resultado menor do que o real consumo de energia elétrica configura estelionato.

Ex: as fases “A” e “B” do medidor foram isoladas por um material transparente, que permitia a alteração do relógio fazendo com que fosse registrada menos energia do que a consumida. STJ. 5ª Turma. AREsp 1.418.119-DF, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 07/05/2019 (Info 648).

  • Cuidado para não confundir:
  • agente desvia a energia elétrica por meio de ligação clandestina (“gato”):crime de FURTO (há subtração e inversão da posse do bem).
  • agente altera o sistema de medição para que aponte resultado menor do que o real consumo: crime de ESTELIONATO.

“Gato”

O agente desvia a energia elétrica de sua fonte natural por meio de ligação clandestina, sem passar pelo medidor.

Trata-se de FURTO.

No furto, a fraude tem por objetivo diminuir a vigilância da vítima e possibilitar a subtração da coisa (inversão da posse). O bem é retirado sem que a vítima perceba que está sendo despojada de sua posse. A concessionária não sabe que está fornecendo energia elétrica para aquele indivíduo. Ele está desviando (subtraindo) a energia da rede.

Alteração do sistema de medição

O agente altera o sistema de medição, mediante fraude, para que aponte resultado menor do que o real consumo.

Trata-se de ESTELIONATO.

A fraude tem por finalidade fazer com que a vítima incida em erro e, voluntariamente, entregue o objeto ao agente criminoso, baseada em uma falsa percepção da realidade.

A concessionária sabe que está fornecendo energia elétrica para aquele consumidor, mas a fraude faz com que ela não perceba que ele está pagando menos do que deveria.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
15
Q

João pegou um táxi.

Ao final da corrida, ele saiu do carro e disse que não iria pagar a corrida.

O motorista também saiu do veículo e foi tentar segurá-lo para que ele não fugisse sem quitar o débito.

João puxou, então, uma faca e desferiu um golpe no taxista, que morreu no local.

Que crime João cometeu?

A

O Ministério Público denunciou João pela prática de roubo seguido do resultado morte, delito tipificado no art. 157, § 2º, II, do CP.

O STJ entendeu que não houve, no contexto delitivo, nenhuma subtração ou tentativa de subtração de coisa alheia móvel, o que afasta a conduta de roubo qualificado pelo resultado, composto pelo verbo “subtrair” e pelo complemento “coisa alheia móvel”.

O agente se negou a efetuar o pagamento da corrida de táxi e desferiu um golpe de faca no motorista, sem (tentar) subtrair objeto algum, de modo a excluir o animus furandi.

Não se pode equiparar “dívida de transporte” com a “coisa alheia móvel” prevista no tipo do art. 157 do Código Penal, sob pena de violação dos princípios da tipicidade e da legalidade estrita, que regem a aplicação da lei penal.

A doutrina conceitua “coisa” como “tudo aquilo que existe, podendo tratar-se de objetos inanimados ou de semoventes”, apontando como imprescindível, ainda, algum valor econômico” (NUCCI, Guilherme de Souza. Código Penal Comentado. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016).

Assim, parece evidente que, embora a dívida do réu para com o motorista tenha, obviamente, valor econômico, não se trata de “coisa”, ao menos para fins de definição jurídica exigida para a correta tipificação da conduta.

How well did you know this?
1
Not at all
2
3
4
5
Perfectly
16
Q

O delito de assédio sexual pode ser pratico por professor contra aluna?

A

O crime de assédio sexual (art. 216-A do CP) é geralmente associado à superioridade hierárquica em relações de emprego, no entanto pode também ser caracterizado no caso de constrangimento cometido por professores contra alunos.

Art. 216-A. Constranger alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Pena – detenção, de 1 (um) a 2 (dois) anos.

Caso concreto: o réu, ao conversar com uma aluna adolescente em sala de aula sobre suas notas, teria afirmado que ela precisava de dois pontos para alcançar a média necessária e, nesse momento, teria se aproximado dela e tocado sua barriga e seus seios. STJ. 6ª Turma. REsp 1.759.135/SP, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, Rel. p/ Acórdão Min. Rogerio Schietti Cruz, julgado em 13/08/2019 (Info 658).

É óbvio que existe uma “ascendência” neste caso, em virtude da “função” desempenhada pelo professor considerando que o docente tem a atribuição e o poder de interferir diretamente na avaliação e no desempenho acadêmico do discente, contexto que lhe gera, inclusive, o receio da reprovação. Logo, a “ascendência” constante do tipo penal não deve se limitar à ideia de relação empregatícia entre as partes. É necessário fazer uma interpretação teleológica do texto legal.

17
Q

A importação de arma de pressão configura crime?

A

Configura CONTRABANDO (e não descaminho) a conduta de importar, à margem da disciplina legal, arma de pressão por ação de gás comprimido ou por ação de mola.

A importação de arma de pressão está sujeita à autorização prévia da Diretoria de Fiscalização de Produtos Controlados do Exército Brasileiro e só pode ser feita por colecionadores, atiradores e caçadores registrados no Exército. Além disso, deve se submeter às normas de desembaraço alfandegário previstas no Regulamento para a Fiscalização de Produtos Controlados.

Logo, trata-se de mercadoria de proibição relativa, sendo a sua importação fiscalizada não apenas por questões de ordem tributária, mas outros interesses ligados à segurança pública.

Não é possível aplicar o princípio da insignificância mesmo que a arma de ar comprimido importada seja de calibre inferior a 6 mm, já que este postulado é incabível para contrabando.

STJ. 5ª Turma. REsp 1428628/RS, Rel. Min. Gurgel de Faria, julgado em 28/04/2015. STJ. 6ª Turma. REsp 1.427.796-RS, Rel. Min. Maria Thereza De Assis Moura, julgado em 14/10/2014 (Info 551). STF. 2ª Turma. HC 131943/RS, Rel. Min. Gilmar Mendes, red. p/ o ac. Min. Edson Fachin, julgado em 7/5/2019 (Info 939).

A importação de arma de ar comprimido constitui crime previsto no Estatuto do Desarmamento?

NÃO. As armas de ar comprimido não estão regidas pela Lei nº 10.826/2003 (Estatuto do Desarmamento) porque este diploma legal trata apenas de armas de fogo. As armas de pressão, por ação de mola ou gás comprimido, não são armas de fogo.

A importação e comercialização de armas de ar comprimido são regidas por qual legislação?

Pelo Decreto nº 9.493/2018 (que aprova o regulamento para a fiscalização de produtos controlados) e por regulamentações expedidas pelo Exército.

18
Q

A causa de aumento do art. 327, parágrafo segundo, do CP se aplica a diretor de autarquia?

Art. 327 - Considera-se funcionário público, para os efeitos penais, quem, embora transitoriamente ou sem remuneração, exerce cargo, emprego ou função pública.

§ 1º - Equipara-se a funcionário público quem exerce cargo, emprego ou função em entidade paraestatal, e quem trabalha para empresa prestadora de serviço contratada ou conveniada para a execução de atividade típica da Administração Pública. (Incluído pela Lei nº 9.983, de 2000)

§ 2º - A pena será aumentada da terça parte quando os autores dos crimes previstos neste Capítulo forem ocupantes de cargos em comissão ou de função de direção ou assessoramento de órgão da administração direta, sociedade de economia mista, empresa pública ou fundação instituída pelo poder público.

A

A causa de aumento prevista no § 2º do art. 327 do Código Penal não pode ser aplicada aos dirigentes de autarquias (ex: a maioria dos Detrans) porque esse dispositivo menciona apenas órgãos, sociedades de economia mista, empresas públicas e fundações. STF. 2ª Turma. AO 2093/RN, Rel. Min. Cármen Lúcia, julgado em 3/9/2019 (Info 950).

19
Q

A conduta de adulterar placa de veículo semirreboque é típica?

A

O Código Penal prevê o crime de adulteração de sinal identificador de veículo automotor: Art. 311. Adulterar ou remarcar número de chassi ou qualquer sinal identificador de veículo automotor, de seu componente ou equipamento: (…)

A conduta de adulterar placa de veículo reboque ou semirreboque é formalmente atípica.

O reboque e o semirreboque são veículos, no entanto, não são veículos automotores. Isso porque veículo automotor é aquele que pode circular por seus próprios meios. O reboque e o semirreboque não conseguem circular por seus próprios meios. Precisam ser “puxados” por um veículo automotor. STJ. 6ª Turma. RHC 98.058-MG, Rel. Min. Laurita Vaz, julgado em 24/09/2019 (Info 657).

20
Q

A falta de informação ao Banco Central, por parte de determinada pessoa, de investimento feito no exterior constitui crime?

A

Resumo

A aplicação financeira não declarada à repartição federal competente no exterior se subsume ao tipo penal previsto na parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 7.492/86.

Art. 22. (…) Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Ex: indivíduo residente no Brasil subscreveu cotas de fundo de investimento sediado nas Ilhas Cayman e não informou a existência de tais valores na declaração de capitais brasileiros no exterior, que deveria ter sido entregue ao Bacen. STJ. 5ª Turma. AREsp 774.523-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 07/05/2019 (Info 648).

Informativo:

O que a legislação exige para a MANUTENÇÃO de valores no exterior depositados em conta bancária? REGRA: Se a pessoa física ou jurídica domiciliada no Brasil possuir recursos, bens ou valores em outro país, ela ficará obrigada a informar essa situação ao Banco Central. Isso está previsto no Decreto-Lei nº 1.060/69:

Art. 1º Sem prejuízo das obrigações previstas na legislação do imposto de renda, as pessoas físicas ou jurídicas ficam obrigadas, na forma, limites e condições estabelecidas pelo Conselho Monetário Nacional, a declarar ao Banco Central do Brasil, os bens e valores que possuírem no exterior, podendo ser exigida a justificação dos recursos empregados na sua aquisição. Parágrafo único. A declaração deverá ser atualizada sempre que houver aumento ou diminuição dos bens, dinheiros ou valores, com a justificação do acréscimo ou da redução.

COMO É ESTA DECLARAÇÃO:

1) se a pessoa possui no exterior menos que 100 mil dólares no dia 31 de dezembro de cada ano: não precisa declarar ao Banco Central.
2) se a pessoa possui entre 100 mil e 100 milhões de dólares no dia 31 de dezembro de cada ano: precisará preencher declaração, destinada ao Banco Central, uma vez por ano, chamada “CBE Anual”.
3) se a pessoa possui 100 milhões de dólares ou mais: precisará apresentar declaração trimestral ao Banco Central. É a chamada “CBE Trimestral”.

Os prazos para entrega da declaração e outras informações estão previstas na Circular nº 3.624/2013 do Banco Central.

A Medida Provisória 2.224/2001 prevê o pagamento de uma multa para quem mantém dinheiro no exterior sem ter declarado ao Banco Central.

A pessoa que remete ou mantém valores no exterior sem observar as exigências legais comete crime?

SIM. Essa pessoa, em tese, pratica o crime do art. 22 da Lei nº 7.492/86, em especial nas figuras do parágrafo único:

Art. 22. Efetuar operação de câmbio não autorizada, com o fim de promover evasão de divisas do País: Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa. Parágrafo único. Incorre na mesma pena quem, a qualquer título, promove, sem autorização legal, a saída de moeda ou divisa para o exterior, ou nele mantiver depósitos não declarados à repartição federal competente.

Além disso, a depender do caso concreto, essa pessoa também poderá ser acusada de cometer outros delitos em concurso formal ou material com o referido art. 22. Exemplos:

  • Falsificação de documento público (art. 297 do CP), particular (art. 298) ou falsidade ideológica (art. 299).
  • Uso de documento falso (art. 304 do CP).
  • Crimes contra a ordem tributária (Lei nº 8.137/90).
  • Lavagem de Dinheiro (Lei nº 9.613/98).

Imagine agora a seguinte situação adaptada:

João, rico empresário, domiciliado no Brasil, subscreveu cotas do Opportunity Fund, sediado nas Ilhas Cayman, no valor de 500 mil dólares.

O Opportunity Fund é um fundo de investimento, ou seja, é uma forma de aplicação financeira. A pessoa investe um determinado valor no fundo, que é administrado por especialistas. Este fundo aplica o valor dos investidores e, depois, divide entre os participantes as receitas que conseguir, abatidas as despesas necessárias para o negócio.

Aplicar dinheiro em um fundo de investimento, em princípio, não é crime algum.

O problema foi que João não declarou ao Banco Central que possuía esse dinheiro investido.

Diante disso, o Ministério Público Federal denunciou João pela prática do crime previsto no art. 22, parágrafo único, parte final, da Lei nº 7.492/86: “mantiver [no exterior] depósitos não declarados à repartição federal competente”.

A defesa do réu recorreu ao STJ alegando que possuir cota em fundo de investimento no exterior não se equipara a manter depósito no exterior.

O que decidiu o STJ? Afinal de contas, possuir cota em fundo de investimento no exterior sem que isso seja declarado ao BACEN configura, em tese, crime contra o sistema financeiro nacional?

SIM.

A aplicação financeira não declarada à repartição federal competente no exterior se subsume ao tipo penal previsto na parte final do parágrafo único do art. 22 da Lei nº 7.492/86. STJ. 5ª Turma. AREsp 774.523-SP, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 07/05/2019 (Info 648).

Como vimos acima, a parte final do parágrafo único do art. 22 diz que é crime manter “depósito” no exterior, sem que isso tenha sido declarado à repartição federal competente (Banco Central)

O que é “depósito”, para os fins do art. 22?

Deve-se interpretar o termo “depósito” de acordo com o fim a que se destina a norma, ou seja, tendo em vista a necessidade de proteção do Sistema Financeiro Nacional (SFN).

Como a lei não restringiu, não se pode restringir a palavra “depósito” apenas para conta bancária no exterior. Logo, deve-se considerar crime também a conduta de manter valores depositados em aplicação financeira no exterior, considerando que isso influencia na disponibilidade da moeda (política cambial) e o seu controle é importante para o Sistema Financeiro Nacional. Confira o que diz a doutrina especializada:

“A forma delitiva da segunda parte do parágrafo único igualmente visa à proteção da regular execução da política cambial, uma vez certo que depósitos titulados no exterior constituem-se como um passivo cambial. Ou seja, na expectativa de que um dia retornarão ao País, esses depósitos exigirão ser contraprestacionados em moeda nacional.

Mais especificamente, o controle exercido pelo BACEN sobre depósitos no exterior tem por objetivo mapear o quadro dos capitais brasileiros no exterior e conhecer a composição do passivo externo líquido do País, dados esses convenientes e necessários à boa formatação da política cambial brasileira, sendo essa a finalidade protetiva da norma.

O objeto material da conduta delituosa são os depósitos mantidos pelo agente no exterior, em moeda ou divisas, ao título que forem: como investimento direto, empréstimos, financiamentos etc.

Compreendem-se nessa conceituação, portanto, as disponibilidades financeiras (divisas ou moeda local depositada em conta bancária) ou títulos que lhe sejam correspondentes por uma relação de liquidez imediata (V. g., aplicações em poupança, fundos de investimentos, ações em bolsa de valores, certificados de depósito bancários etc).” (SCHMIDT, Andrei Zenkner; FELDENS, Luciano. O Crime de Evasão de Divisas: A Tutela Penal do Sistema Financeiro Nacional na Perspectiva da Política Cambial Brasileira. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006, p. 178-179).

“Deve-se incluir no conceito de depósito qualquer tipo de investimento no exterior aplicado no sistema financeiro, tais como, ações, fundos ou cotas de fundos de investimentos (incluindo previdência privada), haja vista o escopo da norma em tutelar o controle das divisas situadas no exterior, abrangendo os respectivos depósitos oriundos de quaisquer tipos de aplicações financeiras, com base na hermenêutica da interpretação sistemática e teleológica.” (NUNES, Leandro Bastos. Evasão de Divisas. 2ª ed., Salvador: Juspodivm, 2017, p. 141-142).

Desse modo, a aplicação financeira realizada por meio da aquisição de cotas do fundo de investimento localizado no exterior e não declarada à autoridade competente (BACEN) preenche a hipótese normativa do art. 22, parágrafo único, parte final, da Lei nº 7.492/86.

21
Q

É possível a aplicação do benefício do parágrafo 4 do art. 33 da Lei n. 11.343\2006 para um indivíduo condenado por tráfico transnacional (“internacional”) de drogas (transporte de 4 kg de cocaína)?

A

A Lei de Drogas prevê, em seu art. 33, § 4º, a figura do “traficante privilegiado”, também chamada de “traficância menor” ou “traficância eventual”:

§ 4º Nos delitos definidos no caput e no § 1º deste artigo, as penas poderão ser reduzidas de um sexto a dois terços, vedada a conversão em penas restritivas de direitos, desde que o agente seja primário, de bons antecedentes, não se dedique às atividades criminosas nem integre organização criminosa.

A habitualidade no crime e o pertencimento a organizações criminosas deverão ser comprovados pela acusação, não sendo possível que o benefício seja afastado por simples presunção.

Assim, se não houver prova nesse sentido, o condenado fará jus à redução da pena.

A quantidade e a natureza são circunstâncias que, apesar de configurarem elementos determinantes na definição do quanto haverá de diminuição, não são elementos que, por si sós, possam indicar o envolvimento com o crime organizado ou a dedicação a atividades criminosas.

Vale ressaltar, por fim, que é possível a aplicação deste benefício mesmo para condenados por tráfico transnacional de drogas. STF. 2ª Turma. HC 152001 AgR/MT, rel. orig. Min. Ricardo Lewandowski, red. p/ o ac. Min. Gilmar Mendes, julgado em 29/10/2019 (Info 958).

Observação: votação aperda da 2 Turma do STF (2x2).

22
Q

João, de dentro da unidade prisional onde cumpre pena, liderava uma organização criminosa. Com o uso de telefone celular, ele organizava a dinâmica do grupo e comandava o tráfico de drogas, dando ordens para seus comparsas que, de fora do presídio, executavam a comercialização do entorpecente. João foi condenado por tráfico de drogas (art. 33 da Lei nº 11.343/2006). Neste caso, ele deverá ter a sua pena aumentada com base no art. 40, III?

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: (…) III - a infração tiver sido cometida nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;

A

SIM. Se o agente comanda o tráfico de drogas de dentro do presídio, deverá incidir a causa de aumento de pena do art. 40, III, da Lei nº 11.343/2006, mesmo que os efeitos destes atos tenham se manifestado a quilômetros de distância.

Não é necessário que a droga passe por dentro do presídio para que incida a majorante prevista no art. 40, III, da Lei nº 11.343/2006. Esse dispositivo não faz a exigência de que as drogas efetivamente passem por dentro dos locais que se busca dar maior proteção, mas apenas que o cometimento dos crimes tenha ocorrido em seu interior. STJ. 5ª Turma. HC 440.888-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 15/10/2019 (Info 659).

Art. 40. As penas previstas nos arts. 33 a 37 desta Lei são aumentadas de um sexto a dois terços, se: (…) III - a infração tiver sido cometida <u><strong>nas dependências ou imediações de estabelecimentos prisionais</strong></u>, de ensino ou hospitalares, de sedes de entidades estudantis, sociais, culturais, recreativas, esportivas, ou beneficentes, de locais de trabalho coletivo, de recintos onde se realizem espetáculos ou diversões de qualquer natureza, de serviços de tratamento de dependentes de drogas ou de reinserção social, de unidades militares ou policiais ou em transportes públicos;

23
Q

O delito de lavagem de dinheiro é absorvido pelo de corrupção passiva quando a proprina é recebida no exterior por meio de transação envolvendo offshore?

A

Resumo

Eduardo Cunha foi condenado pelos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, por ter solicitado e recebido dinheiro de uma empresa privada para interferir em um contrato com a Petrobrás.

A propina teria sido acertada entre o indivíduo chamado “IC”, proprietário da empresa beneficiada, e “JL”, ex-Diretor Internacional da Petrobrás. O pagamento foi realizado mediante transferências para contas secretas no exterior.

O STF entendeu que não se podia reconhecer a consunção entre a corrupção passiva e a lavagem, considerando que não houve simples pagamento da propina para interposta pessoa, mas sim pagamento mediante utilização de contas secretas no exterior em nome de uma offshore, de um lado, e de um trust, de outro, e da realização de transação por meio da qual a propina foi depositada e ocultada em local seguro. Logo, ficou demonstrada da autonomia entre os delitos. STF. 2ª Turma. HC 165036/PR, Rel. Min. Edson Fachin, julgado em 9/4/2019 (Info 937).

Informativo

O caso concreto, com adaptações, foi o seguinte:

O ex-Deputado Federal Eduardo Cunha foi condenado a 15 anos e 4 meses de reclusão pela prática dos crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro e evasão de divisas, por ter solicitado e recebido cerca de 1.311.700 francos suíços de uma empresa privada para interferir em um contrato com a Petrobrás.

A propina teria sido acertada entre o indivíduo chamado “IC”, proprietário da empresa beneficiada, e “JL”, ex-Diretor Internacional da Petrobrás.

O pagamento foi realizado mediante transferências para contas secretas no exterior. Eduardo Cunha impetrou habeas corpus no STF no qual sustenta:

a) a consunção entre os crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro; e
b) como pedido subsidiário, o reconhecimento da ocorrência de concurso formal de crimes entre os atos de corrupção passiva, de lavagem de dinheiro e de evasão de divisas.

O STF acolheu as teses defensivas?

NÃO.

Autonomia entre a corrupção passiva e a lavagem de dinheiro

O impetrante sustentava a consunção dos crimes de corrupção passiva e de lavagem de dinheiro, pois ambos os tipos teriam sido realizados por Eduardo Cunha por meio de uma única conduta, o recebimento das vantagens indevidas nas contas secretas sediadas no exterior.

A tese não foi acolhida.

No presente caso, foram realizadas sucessivas transações com a finalidade de possibilitar a ocultação e a dissimulação do resultado patrimonial da corrupção passiva. Assim, o cenário descrito não retrata apenas uma simples percepção de vantagem indevida por intermédio de terceira pessoa, mas a ocultação dos recursos e a dissimulação de sua titularidade, com aptidão da conduta de conferir aparência de licitude ao objeto material do delito de corrupção, propiciando-se fruição oportuna.

O Min. Edson Fachin destacou que o caso de Cunha não se confunde com o julgamento do ex-Deputado Federal João Paulo Cunha na Ação Penal 470 (“Mensalão”), quando o parlamentar foi condenado por corrupção passiva, mas absolvido do crime de lavagem de dinheiro em razão do fato de a propina ter sido sacada em espécie por sua esposa no banco. Conforme destacou o relator, no caso em questão, não se trata de mero pagamento a interposta pessoa, mas sim de pagamento mediante utilização de contas secretas no exterior em nome de uma offshore, de um lado, e de um trust, de outro, e da realização de transação por meio da qual a propina é depositada e ocultada em local seguro.

Inexistência de concurso formal

Quanto ao pedido subsidiário relativo ao reconhecimento do concurso formal de crimes ao invés de concurso material, o Ministro Relator afirmou que as instâncias ordinárias reconheceram a pluralidade de condutas e a autonomia de desígnios.

Para que haja concurso formal, é necessária a prática de uma só conduta, e não foi isso que ficou demonstrado.

No caso concreto, ficou reconhecida a pluralidade de condutas. Cada crime contou com uma ação ou omissão distinta.

Ademais, o crime de lavagem de dinheiro, quando praticado na modalidade típica de “ocultar”, é permanente, protraindo-se sua execução até que os objetos materiais do branqueamento se tornem conhecidos. No crime de corrupção passiva, por sua vez, a consumação é instantânea.

Vale ressaltar, ainda, que as condutas foram praticadas com desígnios próprios (autônomos). Logo, mesmo que reconhecida a ocorrência de concurso formal, haveria concurso formal impróprio, de forma que seria aplicado também o critério da cumulação de penas (mesmo parâmetro adotado no concurso material). Assim, para a defesa não haveria utilidade porque não se poderia aplicar o critério da exasperação, que só vale para o concurso formal próprio.

24
Q

Configura delito de lavagem de dinheiro o fato de o agente esconder notas de dinheiro recebido como propina nos bolsos do paletó, na cintura e dentro das meias?

A

Resumo

Não configura o crime de lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613/98) a conduta do agente que recebe propina decorrente de corrupção passiva e tenta viajar com ele, em voo doméstico, escondendo as notas de dinheiro nos bolsos do paletó, na cintura e dentro das meias.

Também não configura o crime de lavagem de dinheiro o fato de, após ter sido descoberto, dissimular (“mentir”) a natureza, a origem e a propriedade dos valores. STF. 1ª Turma. Inq 3515/SP, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 8/10/2019 (Info 955)

Informativo

Segundo a denúncia do Ministério Público, os fatos teriam ocorrido da seguinte forma:

“FC”, Presidente de uma empresa pública federal, teria combinado de pagar dinheiro a “AL” (Deputado Federal e líder do seu partido) com o objetivo de que o parlamentar apoiasse a sua permanência na direção da estatal.

O dinheiro teria sido entregue, em São Paulo (SP), para “J”, assessor do Deputado.

“J” tentou embarcar em um voo de São Paulo com destino a Brasília utilizando passagens aéreas custeadas pelo Deputado Federal.

Durante os procedimentos de segurança no aeroporto, constatou-se que “J” carregava R$ 106 mil em espécie.

Ao ser detido para explicações, ele afirmou que a quantia pertencia ao parlamentar.

A PGR denunciou o Deputado Federal por corrupção passiva (art. 317 do CP) e por lavagem de dinheiro (art. 1º da Lei nº 9.613/98):

Art. 1º Ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal.

O Ministério Público narrou que o Deputado, com a finalidade de ocultar a quantia ilícita, determinou que “J” camuflasse as notas de dinheiro na roupa (nos bolsos do paletó, na cintura e dentro das meias) e o orientou a dissimular a natureza, a origem e a propriedade dos valores, caso fosse surpreendido.

A 1ª Turma do STF recebeu a denúncia por corrupção passiva, mas rejeitou quanto ao delito de lavagem.

O crime de “branqueamento de capitais” (sinônimo de lavagem de dinheiro) corresponde a conduta delituosa adicional, a qual se caracteriza mediante nova ação dolosa, distinta daquela que é própria do exaurimento da infração antecedente. Entretanto, a procuradoria-geral da República limitou-se a expor, a título de conduta reveladora de lavagem de dinheiro, a obtenção da vantagem indevida proveniente do delito de corrupção passiva.

O ato de receber valores ilícitos integra o tipo previsto no art. 317 do CP, de modo que a conduta de esconder as notas pelo corpo, sob as vestes, nos bolsos do paletó, junto à cintura e dentro das meias, não se reveste da indispensável autonomia em relação ao crime antecedente, não se ajustando à infração versada no art. 1º da Lei nº 9.613/98.

Também se mostram atípicas as condutas apontadas como configuradoras do delito de lavagem de dinheiro na modalidade de dissimulação da origem de valores, visto que ausente ato voltado ao ciclo de branqueamento.

A falta de justificativa a respeito da origem da quantia ou a apresentação de motivação inverossímil estão inseridas no direito do investigado de não produzir prova contra si, sem implicar qualquer modificação na aparência de ilicitude do dinheiro.

25
Q

Na denúncia do crime de lavagem de dinheiro, é necessário que o Ministério Público descreva a infração penal antecedente?

A

Resumo

Se o Ministério Público oferece denúncia por lavagem de dinheiro, ele deverá narrar, além do crime de lavagem (art. 1º da Lei nº 9.613/98), qual foi a infração penal antecedente cometida. Importante esclarecer, contudo, que não é necessário que o Ministério Público faça uma descrição exaustiva e pormenorizada da infração penal antecedente, bastando apontar a existência de indícios suficientes de que ela tenha sido praticada e que os bens, direitos ou valores que foram “lavados” (ocultados ou dissimulados) sejam provenientes desta infração.

Assim, a aptidão da denúncia relativa ao crime de lavagem de dinheiro não exige uma descrição exaustiva e pormenorizada do suposto crime prévio, bastando a presença de indícios suficientes de que o objeto material da lavagem seja proveniente, direta ou indiretamente, de infração penal. STJ. Corte Especial. APn 923-DF, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 23/09/2019 (Info 657).

Informativo

Lavagem de dinheiro Lavagem de dinheiro é…

  • a conduta segundo a qual a pessoa
  • oculta ou dissimula
  • a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade
  • de bens, direitos ou valores
  • provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal - com o intuito de parecer que se trata de dinheiro de origem lícita.

Em palavras mais simples, lavar é transformar o dinheiro “sujo” (porque oriundo de um crime) em dinheiro aparentemente lícito.

Lei nº 9.613/98

No Brasil, a tipificação e os aspectos processuais do crime de lavagem de dinheiro são regulados pela Lei nº 9.613/98.

Em 2012 foi editada uma lei (Lei nº 12.683/2012), que promoveu importantes alterações na Lei nº 9.613/98 com o objetivo de tornar mais eficiente a persecução penal dos crimes de lavagem de dinheiro.

[…]

Duas inovações no art. 1º Podemos destacar duas novidades trazidas pela Lei nº 12.683/2012:

INOVAÇÃO 1: passou a ser infração penal antecedente.

  • ANTES: somente havia lavagem de dinheiro se a ocultação ou dissimulação fosse de bens, direitos ou valores provenientes de um crime antecedente.
  • DEPOIS: há lavagem de dinheiro se a ocultação ou dissimulação for de bens, direitos ou valores provenientes de um crime ou de uma contravenção penal. Desse modo, a lavagem de dinheiro continua a ser um crime derivado, mas agora depende de uma infração penal antecedente, que pode ser um crime ou uma contravenção penal.

INOVAÇÃO 2: não existe mais um rol taxativo de infrações penais antecedentes.

  • ANTES: a Lei nº 9.613/98 listava um rol de crimes antecedentes para a lavagem de dinheiro fazendo com que o Brasil, segundo a doutrina majoritária, estivesse enquadrado nas legislações de segunda geração.
  • DEPOIS: qualquer infração penal pode ser antecedente da lavagem de dinheiro. A legislação brasileira de lavagem passou para a terceira geração de leis sobre lavagem de dinheiro no mundo.

Vale ressaltar que, se o crime tiver sido praticado antes da Lei nº 12.683/2012, o Ministério Público deverá narrar um crime antecedente que se amolde a um dos incisos do art. 1º segundo a redação que vigorava antes da novidade legislativa.

Nesse sentido: “(…) tendo o crime sido praticado antes da alteração legislativa [da Lei 12.683/2012], a denúncia [deve ter] o cuidado de imputar ao paciente a conduta conforme previsão legal à época dos fatos” (STJ. 5ª Turma. HC 276.245/MG, DJe 20/06/2017).

Denúncia no crime de lavagem de dinheiro

Se o Ministério Público oferece denúncia por lavagem de dinheiro, ele deverá narrar, além do crime de lavagem (art. 1º da Lei nº 9.613/98), qual foi a infração penal antecedente cometida.

Importante esclarecer, contudo, que não é necessário que o Ministério Público faça uma descrição exaustiva e pormenorizada da infração penal antecedente, bastando apontar a existência de indícios suficientes de que ela tenha sido praticada e que os bens, direitos ou valores que foram “lavados” (ocultados ou dissimulados) sejam provenientes desta infração penal.

Princípio da autonomia

O processo e julgamento do crime de lavagem de dinheiro é regido pelo princípio da autonomia. Isso significa que, para a denúncia que imputa ao réu o delito de lavagem de dinheiro ser considerada apta, não é necessária prova concreta da ocorrência da infração penal antecedente, bastando a existência de elementos indiciários de que o capital lavado seja decorrente desta infração penal (STF. 1ª Turma. HC 93.368/PR, DJe de 25/8/2011). Sobre o tema, vale a pena mencionar a redação do art. 2º, II e § 1º da Lei nº 9.613/98:

Art. 2º O processo e julgamento dos crimes previstos nesta Lei: (…)

II - independem do processo e julgamento das infrações penais antecedentes, ainda que praticados em outro país, cabendo ao juiz competente para os crimes previstos nesta Lei a decisão sobre a unidade de processo e julgamento; (…)

§ 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente.

26
Q

Pratica crime prefeito que utiliza dinheiro destinada a programa de saúde para pagamento de dívida da secretaria da saúde com a a previdência municipal?

A

Resumo

Configura o crime do art. 1º, III, do DL 201/67, a conduta do Prefeito que utiliza verbas oriundas do Fundo Nacional de Saúde (vinculadas a determinado programa de saúde) para o pagamento de débitos da Secretaria Municipal de Saúde junto ao instituto de previdência do Município.

O delito previsto no art. 1º, III, do DL 201/1967 consiste em o administrador público aplicar verba pública em destinação diversa da prevista em lei. Não se trata, portanto, de desviar em proveito próprio.

Para a configuração deste crime, é irrelevante verificar se houve, ou não, efetivo prejuízo para a Administração Pública. STF. 1ª Turma. AP 984/AP, Rel. Min. Roberto Barroso, julgado em 11/6/2019 (Info 944)

Info

A situação concreta, segundo a denúncia do MP, foi a seguinte:

Em 2011, Roberto Góes, então Prefeito de Macapá (AP), e dois de seus Secretários Municipais, aplicaram indevidamente verbas públicas no montante de R$ 858 mil, oriundas do Fundo Nacional de Saúde (vinculadas ao Programa DST/AIDS), para pagamento de débitos da Secretaria Municipal de Saúde junto à Macapá Previdência (Macaprev).

Em outras palavras, as verbas que seriam para um programa de saúde foram utilizadas para pagamento de dívidas da Secretaria com o instituto de previdência do Município.

Qual foi o crime, em tese, praticado pelo Prefeito e os Secretários?

O delito previsto no art. 1º, III, do Decreto-Lei 201/67:

Art. 1º São crimes de responsabilidade dos Prefeitos Municipal, sujeitos ao julgamento do Poder Judiciário, independentemente do pronunciamento da Câmara dos Vereadores: (…)

III - desviar, ou aplicar indevidamente, rendas ou verbas públicas; (…)

§1º Os crimes definidos nêste artigo são de ação pública, punidos os dos itens I e II, com a pena de reclusão, de dois a doze anos, e os demais, com a pena de detenção, de três meses a três anos.

O Decreto-Lei 201/67 é um ato normativo com status de lei ordinária e que prevê, em seu art. 1º, uma lista de crimes cometidos por Prefeitos no exercício de suas funções.

O DL 201/67 traz também regras de processo penal que deverão ser aplicadas quando ocorrerem os crimes ali previstos.

Vale ressaltar, mais uma vez, que o DL 201/67 foi recepcionado pela CF/88 como lei ordinária (Súmula 496 do STF).

O que são crimes de responsabilidade?

Tecnicamente falando, crimes de responsabilidade são infrações político-administrativas praticadas por pessoas que ocupam determinados cargos públicos.

Caso o agente seja condenado por crime de responsabilidade, ele não receberá sanções penais (prisão ou multa), mas sim sanções político-administrativas (perda do cargo e inabilitação para o exercício de função pública).

O art. 1º prevê realmente crimes de responsabilidade?

NÃO. O art. 1º afirma que os delitos nele elencados são “crimes de responsabilidade”. Apesar de ser utilizada essa nomenclatura, a doutrina e a jurisprudência “corrigem” o legislador e afirmam que, na verdade, esses delitos são crimes comuns, ou seja, infrações penais iguais àquelas tipificadas no Código Penal e em outras leis penais.

Desse modo, o que o art. 1º traz são crimes funcionais cometidos por Prefeitos.

Vale ressaltar que os crimes de responsabilidade (em sentido estrito) dos Prefeitos estão previstos no art. 4º do DL 201/67. É nesse dispositivo que estão definidas as infrações político-administrativas dos alcaides. Nesse sentido: STF. Plenário. HC 70671, Rel. Min. Carlos Velloso, julgado em 13/04/1994.

Os crimes funcionais dos Prefeitos estão previstos exclusivamente no art. 1º do DL 201/67?

NÃO. Os Prefeitos poderão responder também pelos crimes funcionais previstos no Código Penal, na Lei de Licitações (Lei n. 8.666/93) e em outras leis penais, desde que tais condutas não estejam descritas no art. 1º do DL 201/67. Os crimes tipificados nas demais leis somente incidirão para os Prefeitos se não estiverem previstos no DL 201/67, que é norma específica.

[…]

Crime do art. 1º, III, do DL 201/67 não envolve desviar recursos em proveito próprio

O crime previsto no art. 1º, III, do DL 201/1967 consiste em o administrador público aplicar verba pública em destinação diversa da prevista em lei. Não se trata, portanto, de desviar em proveito próprio.

Para a configuração deste crime, é irrelevante verificar se houve, ou não, efetivo prejuízo para a Administração Pública.

Dolo

O STF entendeu que era evidente o conhecimento do fato pelo ex-Prefeito, que assinou a ordem de pagamento para a transferência, a demonstrar domínio do fato e o poder de gestão dos recursos efetivamente empregados em finalidade diversa da estabelecida por lei.

Observou que, na véspera da referida transferência, houve uma reunião com os corréus na qual foi decidida a destinação das verbas. Ressalte-se que um deles até mesmo declarou que o parlamentar sabia da operação ilegal descrita na denúncia. Ademais, no mesmo dia da citada reunião, foi enviado ofício do Gabinete da Secretaria Municipal de Saúde, que fez remissão à “determinação superior” e encaminhou à Secretaria Municipal de Finanças a relação das contas referentes às transferências “fundo a fundo”, para que fosse processada a imediata centralização dessas contas em uma única conta.

27
Q

Quais argumentos o STF invovou para considerar a homofobia e a transfobia crime de preconceito de raça?

A

Resumo

  1. Até que sobrevenha lei emanada do Congresso Nacional destinada a implementar os mandados de criminalização definidos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição da República, as condutas homofóbicas e transfóbicas, reais ou supostas, que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou à identidade de gênero de alguém, por traduzirem expressões de racismo, compreendido este em sua dimensão social, ajustam-se, por identidade de razão e mediante adequação típica, aos preceitos primários de incriminação definidos na Lei nº 7.716, de 08.01.1989, constituindo, também, na hipótese de homicídio doloso, circunstância que o qualifica, por configurar motivo torpe (Código Penal, art. 121, § 2º, I, “in fine”);
  2. A repressão penal à prática da homotransfobia não alcança nem restringe ou limita o exercício da liberdade religiosa, qualquer que seja a denominação confessional professada, a cujos fiéis e ministros (sacerdotes, pastores, rabinos, mulás ou clérigos muçulmanos e líderes ou celebrantes das religiões afro-brasileiras, entre outros) é assegurado o direito de pregar e de divulgar, livremente, pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, o seu pensamento e de externar suas convicções de acordo com o que se contiver em seus livros e códigos sagrados, bem assim o de ensinar segundo sua orientação doutrinária e/ou teológica, podendo buscar e conquistar prosélitos e praticar os atos de culto e respectiva liturgia, independentemente do espaço, público ou privado, de sua atuação individual ou coletiva, desde que tais manifestações não configurem discurso de ódio, assim entendidas aquelas exteriorizações que incitem a discriminação, a hostilidade ou a violência contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;
  3. O conceito de racismo, compreendido em sua dimensão social, projeta-se para além de aspectos estritamente biológicos ou fenotípicos, pois resulta, enquanto manifestação de poder, de uma construção de índole histórico-cultural motivada pelo objetivo de justificar a desigualdade e destinada ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade daqueles que, por integrarem grupo vulnerável (LGBTI+) e por não pertencerem ao estamento que detém posição de hegemonia em uma dada estrutura social, são considerados estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito. STF. Plenário. ADO 26/DF, Rel. Min. Celso de Mello; MI 4733/DF, Rel. Min. Edson Fachin, julgados em em 13/6/2019 (Info 944).

Info

Lei nº 7.716/89

A Lei nº 7.716/89 prevê os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. O art. 20 da Lei nº 7.716/89, por exemplo, trata sobre o crime de racismo:

Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional. Pena: reclusão de um a três anos e multa.

Além dele, existem outros delitos tipificados pela Lei nº 7.716/89, como, por exemplo, os arts. 5º e 13:

Art. 5º Recusar ou impedir acesso a estabelecimento comercial, negando-se a servir, atender ou receber cliente ou comprador. Pena: reclusão de um a três anos.

Art. 13. Impedir ou obstar o acesso de alguém ao serviço em qualquer ramo das Forças Armadas. Pena: reclusão de dois a quatro anos.

O grande ponto, contudo, da Lei nº 7.716/89 é que ela prevê que a punição para essas condutas ocorre se o preconceito manifestado for em razão da raça ou da cor da vítima. O art. 20 fala também em preconceito relacionado com a etnia, religião e procedência nacional.

Preconceito

É o pensamento que existe em determinados indivíduos no sentido de que certas pessoas ou grupos sociais são inferiores, nocivos, prejudiciais.

“O preconceito é subjetivo, interior, está no intelecto da pessoa, configura um pré-julgamento negativo com relação a outro indivíduo ou grupo.” (LAURIA, Mariano Paganini. Leis Penais Especiais comentadas artigo por artigo. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 534).

Discriminação

É a exteriorização do preconceito por meio da prática de atos materiais.

Raça

O conceito de “raça” é amplo e não está limitado a uma definição biológica.

Em outras palavras, o conceito de raça não exige que as pessoas possuam as mesmas características genéticas, tais como cor do cabelo, dos olhos e da pele (LAURIA, Mariano Paganini. ob. cit., p. 534).

“A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social.” (Min. Maurílio Correia no HC 82424, julgado pelo STF em 17/09/2003).

Assim, por exemplo, os judeus são uma raça, mesmo que os indivíduos que componham essa coletividade possuam características genéticas distintas entre si.

Cor

É a cor que a pessoa possui. É tonalidade, a pigmentação da pele.

[…]

A Lei nº 7.716/89 previu, expressamente, que os crimes nela tipificados podem ser aplicados em caso de manifestações de preconceito relacionadas com orientação sexual? A Lei nº 7.716/89 prevê, expressamente, punição para condutas homofóbicas e transfóbicas?

NÃO. A Lei nº 7.716/89 não traz, expressamente, previsão para punição de condutas homofóbicas e transfóbicas.

A doutrina e a jurisprudência, por sua vez, afirmavam que o rol de elementos de preconceito e discriminação do art. 20 era taxativo. Nesse sentido: STF. 1ª Turma. Inq 3590/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 12/8/2014.

Projetos de lei

Tramitavam no Congresso Nacional alguns projetos de lei buscando incluir, expressamente, na Lei nº 7.716/89, como crime, as condutas homofóbicas e tansfóbicas. Contudo, sempre se observou uma resistência muito grande de certos setores da sociedade com a punição de tais condutas e, em razão disso, esses projetos nunca foram aprovados.

Mandado de injunção

Diante do cenário acima descrito, em 2012, a Associação Brasileira de Gays, Lésbicas e Transgêneros (ABGLT) impetrou mandado de injunção no STF no qual pediu o reconhecimento de que a homofobia e a transfobia se enquadrassem no conceito de racismo ou, subsidiariamente, que fossem entendidas como discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais.

Com fundamento nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição Federal, a ABGLT sustentou que a demora do Congresso Nacional é inconstitucional, tendo em vista o dever de editar legislação criminal sobre a matéria.

O Min. Edson Fachin foi sorteado relator deste mandado de injunção.

ADO

Cerca de um ano depois, em 2013, o Partido Popular Socialista (PPS) ajuizou ação direta de inconstitucionalidade por omissão (ADO), na qual pediu que o STF declarasse a omissão do Congresso Nacional por não ter votado projeto de lei que criminaliza atos de homofobia.

A ação foi proposta a fim de que seja imposto ao Poder Legislativo o dever de elaborar legislação criminal que puna a homofobia e a transfobia como espécies do gênero “racismo”.

A criminalização específica, conforme o partido, decorre da ordem constitucional de legislar relativa ao racismo - crime previsto no art. 5º, XLII, da Constituição Federal - ou, subsidiariamente, às discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (art. 5º, XLI) ou, ainda, também subsidiariamente, ao princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção deficiente (art. 5º, LIV).

De acordo com o partido, o Congresso Nacional tem se recusado a votar o projeto de lei que visa efetivar tal criminalização.

O Min. Celso de Mello foi designado como relator da ADO.

Síntese dos argumentos

As duas ações desenvolveram a seguinte linha de raciocínio:

• a CF/88 possui mandados de criminalização, ou seja, “ordens” dadas pelo legislador constituinte ao legislador infraconstitucional (Congresso Nacional) no sentido de que ele deveria editar lei punindo criminalmente condutas que configurem discriminação e racismo. Esses mandados de criminalização estão em dois dispositivos constitucionais:

Art. 5º (…)

XLI - a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais;

XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei;

  • o Congresso Nacional já puniu diversas condutas discriminatórias na Lei nº 7.716/89, mas continua sendo omisso no que tange à homofobia e transfobia. Logo, essa omissão precisa ser corrigida;
  • a Lei nº 7.716/89 pune condutas racistas. Enquanto não se edita uma lei específica para se punir as condutas homofóbicas e transfóbicas, deve-se aplicar os crimes previstos na Lei nº 7.716/89 para tais condutas. Isso porque o conceito de racismo é amplo, não ficando limitado a uma definição biológica.

Depois de muitas sessões de discussão, o que decidiu o STF? O STF concordou com as ações propostas?

SIM.

Quanto ao MI:

O STF, por maioria, julgou procedente o mandado de injunção para:

a) reconhecer a mora inconstitucional do Congresso Nacional e;
b) aplicar, com efeitos prospectivos, até que o Congresso Nacional venha a legislar a respeito, a Lei nº 7.716/89 a fim de estender a tipificação prevista para os crimes resultantes de discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional à discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero.

Quanto à ADO:

O STF, também por maioria, julgou a ADO procedente, com eficácia geral e efeito vinculante, para:

a) reconhecer o estado de mora inconstitucional do Congresso Nacional na implementação da prestação legislativa destinada a cumprir o mandado de incriminação a que se referem os incisos XLI e XLII do art. 5º da Constituição, para efeito de proteção penal aos integrantes do grupo LGBT;
b) declarar, em consequência, a existência de omissão normativa inconstitucional do Poder Legislativo da União;
c) cientificar o Congresso Nacional, para os fins e efeitos a que se refere o art. 103, § 2º, da Constituição c/c o art. 12-H, caput, da Lei nº 9.868/99:

Art. 103 (…) § 2º Declarada a inconstitucionalidade por omissão de medida para tornar efetiva norma constitucional, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias e, em se tratando de órgão administrativo, para fazê-lo em trinta dias.

Da Decisão na Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão

Art. 12-H. Declarada a inconstitucionalidade por omissão, com observância do disposto no art. 22, será dada ciência ao Poder competente para a adoção das providências necessárias.

d) dar interpretação conforme à Constituição, em face dos mandados constitucionais de incriminação inscritos nos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta Política, para enquadrar a homofobia e a transfobia, qualquer que seja a forma de sua manifestação, nos diversos tipos penais definidos na Lei nº 7.716/89, até que sobrevenha legislação autônoma, editada pelo Congresso Nacional, por dois motivos:
d. 1) porque as práticas homotransfóbicas qualificam-se como espécies do gênero racismo, na dimensão de racismo social consagrada pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento plenário do HC 82.424/RS (caso Ellwanger), na medida em que tais condutas importam em atos de segregação que inferiorizam membros integrantes do grupo LGBT, em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero;
d. 2) porque tais comportamentos de homotransfobia ajustam-se ao conceito de atos de discriminação e de ofensa a direitos e liberdades fundamentais daqueles que compõem o grupo vulnerável em questão;
e) declarar que os efeitos da interpretação conforme a que se refere a alínea “d” somente se aplicarão a partir da data em que se concluir o presente julgamento.

O tema é extremamente amplo e irei fazer um breve resumo dos principais argumentos apresentados pelos Ministros

Min. Celso de Mello

Ausência de proteção estatal a condutas homofóbicas e transfóbicas

O gênero e a orientação sexual constituem elementos essenciais e estruturantes da própria identidade da pessoa humana e integram uma das mais íntimas e profundas dimensões de sua personalidade.

No entanto, devido à ausência de adequada proteção estatal, especialmente em razão da controvérsia gerada pela denominada “ideologia de gênero”, os integrantes da comunidade LGBT acham-se expostos a ações de caráter segregacionista, com caráter homofóbico, que têm por objetivo limitar ou suprimir prerrogativas essenciais de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transgêneros e intersexuais, entre outros.

Tais práticas culminam no tratamento dessas pessoas como indivíduos destituídos de respeito e consideração, degradados ao nível de quem não tem nem sequer direito a ter direitos, por lhes ser negado, mediante discursos autoritários e excludentes, o reconhecimento da legitimidade de sua própria existência.

Essa visão de mundo, fundada na ideia artificialmente construída de que as diferenças biológicas entre o homem e a mulher devem determinar os seus papéis sociais, impõe uma inaceitável restrição às suas liberdades fundamentais, com a submissão dessas pessoas a um padrão existencial heteronormativo, incompatível com a diversidade e o pluralismo que caracterizam uma sociedade democrática, e, ainda, a imposição da observância de valores que, além de conflitarem com sua própria vocação afetiva, conduzem à frustração de seus projetos pessoais de vida.

Existe um dever imposto pela CF/88 ao Congresso Nacional para que se crie normas de punição das condutas discriminatórias

A Constituição Federal possui dois mandados de incriminação para condutas discriminatórias: art. 5º, incisos XLI e XLII.

Assim, é possível concluir que a omissão do Congresso Nacional em produzir normas legais de proteção penal à comunidade LGBT traduz situação configuradora de ilicitude, em afronta ao texto da CF/88.

Há descumprimento, por inércia estatal, de norma impositiva de comportamento atribuído ao Parlamento

Na tipologia das situações inconstitucionais, estamos diante do descumprimento, por inércia estatal, de uma norma impositiva de determinado comportamento atribuído ao poder público pela própria Constituição.

Trata-se, portanto, de omissão abusiva no adimplemento da prestação legislativa.

Há uma imposição constitucional de legislar e um estado de mora do legislador, mora essa que já superou, de forma excessiva, qualquer prazo razoável, considerando que a Constituição Federal foi editada em 1988.

Esse cenário faz com que se chegue à conclusão de que estão presentes os requisitos para a declaração de inconstitucionalidade por omissão.

ADO como instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas

A ação direta de inconstitucionalidade por omissão deve ser vista como instrumento de concretização das cláusulas constitucionais frustradas pela inaceitável omissão do poder público.

Isso porque as imposições feitas pela Constituição não podem ficar na inadmissível condição subalterna de um estatuto subordinado à vontade ordinária do legislador comum.

Possibilidade diante do reconhecimento da omissão

Pois bem. Ficou reconhecido que há uma mora imputável ao Congresso Nacional. O Min. Celso de Mello afirmou que haveria duas possibilidades de o STF agir diante disso:

a) apenas cientificar o Congresso Nacional para que ele adote, em prazo razoável, as medidas necessárias à efetivação da norma constitucional (art. 103, § 2º, c/c art. 12-H da Lei nº 9.868/99); ou
b) reconhecer, imediatamente, que a homofobia e a transfobia enquadram-se, mediante interpretação conforme à Constituição, na noção conceitual de racismo prevista na Lei nº 7.716/89.

Mero apelo ao legislador não tem sido eficaz

Para o Min. Celso de Mello, o mero apelo ao legislador não tem se mostrado uma solução eficaz, em razão da indiferença do Poder Legislativo que, em determinadas decisões anteriormente emanadas do STF, tem persistido em permanecer em estado de inadimplemento da prestação legislativa que lhe incumbe promover.

Diante disso, o STF, ao longo dos últimos trinta anos, evoluiu no plano jurisprudencial em busca da construção de soluções que pudessem fazer cessar esse estado de inconstitucional omissão normativa. Isso se deu, por exemplo, no caso do direito de greve por servidores públicos, no qual o STF determinou que, diante da ausência da lei prevista no art. 37, VII, da CF/88, os servidores públicos podem fazer greve, devendo ser aplicadas as leis que regulamentam a greve para os trabalhadores da iniciativa privada (Lei nº 7.701/88 e Lei nº 7.783/89): STF. Plenário. MI 708, Rel. Min. Gilmar Mendes, julgado em 25/10/2007.

Esse exercício de interpretação não significa legislar (não se está usurpando a competência do CN)

Para o Ministro, essa postura adotada no caso da greve – que não se limita a cientificar o Congresso da mora, fornecendo, desde logo, uma solução jurídica para o caso – é um procedimento hermenêutico realizado pelo Poder Judiciário para extrair a necessária interpretação dos diversos diplomas legais.

Segundo o Ministro, isso não se confunde com o processo de elaboração legislativa, ou seja, não se pode dizer que o STF esteja legislando.

O processo de interpretação dos textos legais e da Constituição não importa em usurpação das atribuições normativas dos demais poderes da República.

Conceito de “raça”

O conceito de “raça” que compõe a estrutura normativa dos tipos penais incriminadores previstos na Lei nº 7.716/89 tem merecido múltiplas interpretações, revestindo-se, por isso, de inegável conteúdo polissêmico (algo que tem muitos significados).

Um exemplo disso foi o célebre julgamento do “caso Ellwanger” (HC 82424), em setembro de 2003, quando o STF manteve a condenação imposta ao escritor gaúcho Siegfried Ellwanger por crime de racismo contra os judeus. Naquela ocasião, o STF afastou a alegação da defesa de que os “judeus” não seriam uma “raça”. Pode-se dizer, portanto, que o STF adotou uma espécie de conceito “social” de raça.

(…) 3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e o mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras características físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais. 4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um processo de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista. (…) STF. Plenário. HC 82424, Relator p/ Acórdão Min. Maurício Corrêa, julgado em 17/09/2003.

Racismo é um conceito aberto que abrange preconceitos contra pessoas em razão de sua orientação sexual ou identidade de gênero

Assim, a noção de racismo – para efeito de configuração típica dos delitos previstos na Lei nº 7.716/89 – não se resume a um conceito de ordem estritamente antropológica ou biológica. Projeta-se, ao contrário, numa dimensão abertamente cultural e sociológica, a abranger até mesmo situações de agressão injusta resultantes de discriminação ou de preconceito contra pessoas por sua orientação sexual ou sua identidade de gênero.

Atos homofóbicos e transfóbicos são formas contemporâneas de racismo

A configuração de atos homofóbicos e transfóbicos como formas contemporâneas do racismo objetiva preservar a incolumidade dos direitos da personalidade, como a essencial dignidade da pessoa humana.

Busca inibir, desse modo, comportamentos abusivos que possam, impulsionados por motivações subalternas, disseminar criminosamente o ódio público contra outras pessoas em razão de sua orientação sexual ou de sua identidade de gênero.

Interpretação conforme

Vale ressaltar que a aplicação da Lei nº 7.716/89 para condutas homofóbicas e transfóbicas resulta da aplicação do método da interpretação conforme.

Assim, fazendo-se uma intepretação conforme do conceito de “raça”, previsto na Lei nº 7.716/89, chegase à conclusão de que ele pode abranger também orientação sexual e identidade de gênero.

Nas exatas palavras do Min. Celso de Mello:

“A constatação da existência de múltiplas expressões semiológicas propiciadas pelo conteúdo normativo da ideia de “raça” permite reconhecer como plenamente adequado o emprego, na presente hipótese, da técnica de decisão e de controle de constitucionalidade fundada no método da interpretação conforme à Constituição.”

Não se trata de analogia

Atenção. Para o Min. Celso de Mello, a construção que foi feita, ou seja, a aplicação da Lei nº 7.716/89 às condutas homofóbicas e transfóbicas, não é aplicação analógica. Para ele, houve apenas interpretação conforme a Constituição. Confira:

“A solução propugnada não sugere a aplicação analógica das normas penais previstas na Lei 7.716/1989 nem implica a formulação de tipos criminais ou cominação de sanções penais.

É certo que, considerado o princípio constitucional da reserva absoluta de lei formal, o tema pertinente à definição de tipo penal e à cominação de sanção penal subsume-se ao âmbito das normas de direito material, de natureza eminentemente penal, regendo-se, em consequência, pelo postulado da reserva de parlamento.

Assim, inviável, em controle abstrato de constitucionalidade, colmatar, mediante decisão desta Corte Suprema, a omissão denunciada pelo autor da ação direta, procedendo-se à tipificação penal de condutas atentatórias aos direitos e liberdades fundamentais dos integrantes da comunidade LGBT.

Na verdade, a solução ora proposta limita-se à mera subsunção de condutas homotransfóbicas aos diversos preceitos primários de incriminação definidos em legislação penal já existente (Lei 7.716/1989), pois os atos de homofobia e de transfobia constituem concretas manifestações de racismo, compreendido em sua dimensão social, ou seja, o denominado racismo social.”

Não há ofensa à liberdade religiosa

É necessário destacar que a decisão, no presente caso, não implica a ocorrência de qualquer ofensa ou dano potencial à liberdade religiosa, qualquer que seja a dimensão em que aquela se projete.

A liberdade religiosa faz parte do regime democrático e não pode nem deve ser impedida pelo poder público nem submetida a ilícitas interferências do Estado.

A adoção pelo Estado de meios destinados a impedir condutas homofóbicas e transfóbicas em hipótese alguma poderá restringir ou suprimir a liberdade de consciência e de crença, nem autorizar qualquer medida que interfira nas celebrações litúrgicas ou que importe em cerceamento à liberdade de palavra, seja como instrumento de pregação da mensagem religiosa, seja, ainda, como forma de exercer o proselitismo em matéria confessional em espaços públicos ou privados.

Há que se preservar, portanto, a possibilidade de os líderes e membros das religiões exporem suas narrativas, conselhos, lições ou orientações constantes de seus livros sagrados, seja qual for a religião (como a Bíblia, a Torah, o Alcorão, a Codificação Espírita, os Vedas hindus e o Dhammapada budista).

Essas práticas não configuram delitos contra a honra, porque veiculados com o intuito de divulgar o pensamento resultante do magistério teológico e da filosofia espiritual que são próprios de cada uma dessas denominações confessionais. Tal circunstância descaracteriza, por si só, o intuito doloso dos delitos contra a honra, a tornar legítimos o discurso e a pregação como expressões dos postulados de fé dessas religiões.

Em caso de insultos, ofensas ou estimulo à violência, poderá haver crime

Por outro lado, o direito de dissentir deixa de ser legítimo quando a sua exteriorização ofender valores e bens jurídicos igualmente protegidos pela ordem constitucional, como sucede com o direito de terceiros à incolumidade de seu patrimônio moral.

Assim, pronunciamentos de índole religiosa que extravasem (extrapolem) os limites da livre manifestação de ideias, constituindo-se em insultos, ofensas ou em estímulo à intolerância e ao ódio público contra os integrantes da comunidade LGBT, não merecem proteção constitucional e não podem ser considerados liberdade de expressão. Em tais situações, haverá crime.

Função contramajoritária do STF

Para o Min. Celso de Mello, este julgamento reflete a função contramajoritária que o STF possui de, no Estado Democrático de Direito, conferir efetiva proteção às minorias.

É uma função exercida no plano da jurisdição das liberdades.

Nesse sentido, o STF desempenha o papel de órgão investido do poder e da responsabilidade institucional de proteger as minorias contra eventuais excessos da maioria ou contra omissões que se tornem lesivas, diante da inércia do Estado, aos direiitos daqueles que sofrem os efeitos perversos do preconceito, da discriminação e da exclusão jurídica.

Assim, para que o regime democrático não se reduza a uma categoria político-jurídica meramente conceitual ou simplesmente formal, torna-se necessário assegurar às minorias a plenitude de meios que lhes permitam exercer, de modo efetivo, os direitos fundamentais assegurados a todos. Ninguém se sobrepõe, nem mesmo os grupos majoritários, aos princípios superiores consagrados pela Constituição da República.

Min. Edson Fachin

A CF/88 impõe um dever estatal de legislar (mandado de criminalização contra a discriminação homofóbica e transfóbica) em seu art. 5º, XLI, da CF/88.

O trâmite de projetos de lei sobre a matéria no Congresso Nacional não obsta o conhecimento do mandado de injunção, haja vista jurisprudência do STF no sentido de que esse fato não serve para afastar o reconhecimento da omissão inconstitucional.

Há um quadro de violações sistemáticas aos direitos da população LGBTI, constatado também pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos e pelo Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas.

No mérito, o Ministro consignou que o direito constante do art. 5º, XLI, efetivamente contém mandado de criminalização contra a discriminação homofóbica e transfóbica.

Ante a mora do Congresso Nacional, essa ordem comporta, até que seja suprida, a colmatação pelo STF por meio de interpretação conforme da legislação de combate à discriminação.

A seu ver, conforme o inciso XLI, qualquer espécie de discriminação é atentatória ao Estado Democrático de Direito, inclusive a que se fundamenta na orientação sexual das pessoas ou na sua identidade de gênero.

Vale ressaltar que na ADI 4275 o STF consignou que o direito à igualdade sem discriminações abrange a identidade ou expressão de gênero e a orientação sexual. Ademais, no âmbito internacional, o posicionamento é na mesma direção.

Os tratados internacionais de que a República brasileira é parte também contêm mecanismos de proteção proporcional. À luz desses tratados, dessume-se da leitura da CF/1988 um mandado constitucional de criminalização no tocante a toda e qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais, incluída a de orientação sexual e de identidade de gênero.

O mandado de injunção é a garantia para a efetividade do direito protegido pelo mandado de criminalização e que o STF compreendeu ser cabível ao Poder Judiciário atuar nas hipóteses de inatividade ou omissão do Legislativo.

No caso, além da falta de norma que proteja o público LGBT, verifica-se também uma situação de ofensa ao princípio da igualdade. Isso porque condutas igualmente reprováveis recebem tratamento jurídico distinto. Ex: impedir ou obstar acesso a órgão da Administração Pública, ou negar emprego em empresa privada, por preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional são condutas típicas, nos termos da Lei nº 7.716/89. Se as mesmas condutas fossem praticadas com preconceito a homossexual ou transgênero, não haveria crime.

Dessa maneira, a omissão legislativa em tipificar a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero ofende um sentido mínimo de justiça ao sinalizar a tolerância à violência dirigida a pessoa, como se não fosse digna de viver em igualdade. Toda pessoa deve ser protegida contra qualquer ato que atinja sua dignidade. É preciso dar sentido e concretude ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana, que se torna passível de aplicação direta à situação em análise, por ter sido seu conteúdo nitidamente violado.

É certo que não pode o STF substituir o legislador, mas aqui há comando constitucional para regulamentar situações concretas. Lei específica sobre o tema deveria ter sido editada, porque o legislador constituinte originário, desde 1988, vinculou o legislador derivado. A falta de norma inviabiliza o exercício de direitos, e o texto constitucional não exclui o mandado de injunção de qualquer seara específica de incidência.

O Min. Fachin também sustentou que o STF não está fazendo analogia in malam partem ao aplicar a Lei nº 7.716/89 para manifestações homofóbicas ou transfóbicas. A CF contém expresso comando de punição penal para a discriminação homofóbica e a extensão prospectiva da lei de discriminação racial, até a edição específica de norma pelo Poder Legislativo, não viola o princípio da anterioridade da lei penal.

[…]

Min. Roberto Barroso

O Min. Luís Roberto Barroso também reconheceu a omissão legislativa. Ele observou que é papel do STF, no entanto, estabelecer diálogo respeitoso com o Congresso e também com a sociedade. “Se o Congresso atuou, a sua vontade deve prevalecer. Se não atuou e havia um mandamento constitucional nesse sentido, que o Supremo atue para fazer valer o que está previsto na Constituição”.

A regra geral, afirmou, é a de autocontenção, deixando o maior espaço possível para a atuação do Legislativo. “Porém, quando estão em jogo direitos fundamentais ou a preservação das regras do jogo democrático, se justifica uma postura mais proativa do STF”. Esse é o caso dos autos.

Barroso explicou que a punição para atos de homofobia e transfobia deve ser de natureza criminal por três razões: a relevância do bem jurídico tutelado e a sistematicidade de violação a este direito, o fato de que outras discriminações são punidas pelo direito penal e a circunstância de que a punição administrativa não é suficiente, uma vez que não coíbe de maneira relevante as violências homofóbicas. “Deixar de criminalizar a homofobia seria tipicamente uma hipótese de proteção deficiente”.

Afirmou que a solução dada (aplicar a Lei do Racismo) não configura analogia nem interpretação extensiva. Isso porque no conceito de racismo firmado pelo STF estão colhidas as situações tipificadas na lei.

Por fim, o Ministro também acolheu o pedido para interpretar o Código Penal conforme a Constituição para fixar que, se a motivação de homicídio for a homofobia, estará caracterizado o motivo fútil ou torpe, constituindo circunstância agravante ou qualificadora.

28
Q

O crime de embaraçar investigação previsto na Lei do Crime Organizado aplica-se à fase processual?

Art. 2º (…) § 1º Nas mesmas penas incorre quem impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva organização criminosa.

A

SIM. A tese de que a investigação criminal descrita no art. 2º, § 1º, da Lei nº 12.850/2013 limita-se à fase do inquérito não foi aceita pelo STJ. Isso porque as investigações se prolongam durante toda a persecução criminal, que abarca tanto o inquérito policial quanto a ação penal deflagrada pelo recebimento da denúncia.

Assim, como o legislador não inseriu uma expressão estrita como “inquérito policial”, compreende-se ter conferido à investigação de infração penal o sentido de “persecução penal”, até porque carece de razoabilidade punir mais severamente a obstrução das investigações do inquérito do que a obstrução da ação penal.

Ademais, sabe-se que muitas diligências realizadas no âmbito policial possuem o contraditório diferido, de tal sorte que não é possível tratar inquérito e ação penal como dois momentos absolutamente independentes da persecução penal.

O tipo penal previsto pelo art. 2º, §1º, da Lei nº 12.850/2013 define conduta delituosa que abrange o inquérito policial e a ação penal. STJ. 5ª Turma. HC 487.962-SC, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 28/05/2019 (Info 650).

INFO

Qual foi a técnica de hermenêutica utilizada para se construir o raciocínio acima? Analogia?

NÃO. Não houve emprego de analogia. Trata-se unicamente de interpretação extensiva.

Nesse sentido: “o crime em exame não se perfaz apenas quando o sujeito ativo impede ou de qualquer forma, embaraça o andamento de inquérito policial de infração que envolva organização criminosa e tampouco, se circunscreve à primeira fase da persecução penal (…) Impedir ou embaraçar processo judicial também se enquadra no § 1º do art. 2º da Lei 12.850/2013, conclusão a que se chega mediante interpretação extensiva. Ora se é punido o menos(investigação), há de ser punido o mais (processo penal). Não se pode olvidar que o bem jurídico tutelado é a própria Administração da Justiça. Assim, o dispositivo em questão peca por inadequação de linguagem, e não por ser lacunoso. Portanto, não há falar em analogia in malam partem, esta sim vedada em matéria penal. Com esse entendimento, busca-se apenas a mens legis e não uma solução além da vontade do legislador (…)” (MASSON, Cleber; MARÇAL, Vinícius. Crime organizado. 2ª ed., São Paulo: Método, 2016).

É a posição também de Nucci:

“Segundo cremos, impedir ou embaraçar processo judicial também se encaixa nesse tipo penal, valendo-se de interpretação extensiva. Afinal, se o menos é punido (perturbar mera investigação criminal), o mais (processo instaurado pelo mesmo motivo) também deve ser.” (NUCCI, Guilherme de Souza. Organização criminosa. 2ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2015).

29
Q

Qualifica-se como hediondo o crime de posse de arma de uso restrito?

A

Pelo nova redação dada pela Lei n. 13.964\2019:

  • o art. 16 do Estatuto do Desarmamento passou a diferenciar arma de fogo de uso restrito de arma de fogo de uso proibido;
  • somente é crime hediondo a posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito.

Isso significa que as pessoas condenadas pelo art. 16 do Estatuto do Desarmamento por condutas envolvendo armas de fogo de uso restrito não mais poderão receber o tratamento destinado aos crimes hediondo. Tais crimes deixaram de ser hediondos. Houver, portanto, novatio legis in mellius.

Antes:

Parágrafo único. Consideram-se também hediondos o crime de genocídio previsto nos arts. 1o, 2o e 3o da Lei no 2.889, de 1o de outubro de 1956, e o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, previsto no art. 16 da Lei no 10.826, de 22 de dezembro de 2003, todos tentados ou consumados. (Redação dada pela Lei nº 13.497, de 2017)

Hoje:

Parágrafo único. Consideram-se também hediondos, tentados ou consumados: (Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

I - o crime de genocídio, previsto nos arts. 1º, 2º e 3º da Lei nº 2.889, de 1º de outubro de 1956; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

II - o crime de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso proibido, previsto no art. 16 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

III - o crime de comércio ilegal de armas de fogo, previsto no art. 17 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

IV - o crime de tráfico internacional de arma de fogo, acessório ou munição, previsto no art. 18 da Lei nº 10.826, de 22 de dezembro de 2003; (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

V - o crime de organização criminosa, quando direcionado à prática de crime hediondo ou equiparado. (Incluído pela Lei nº 13.964, de 2019)

30
Q

São imprescritíveis os crimes de lesa-humanidade?

A

Resumo

É necessária a edição de lei em sentido formal para a tipificação do crime contra a humanidade trazida pelo Estatuto de Roma, mesmo se cuidando de Tratado internalizado.

A definição dos crimes de lesa-humanidade, também chamados de crimes contra a humanidade, pode ser encontrada no Estatuto de Roma, promulgado no Brasil por força do Decreto nº 4.388/2002.

No Brasil, no entanto, ainda não há lei que tipifique os crimes contra a humanidade. Diante da ausência de lei interna tipificando os crimes contra a humanidade, não é possível utilizar tipo penal descrito em tratado internacional para tipificar condutas internamente, sob pena de se violar o princípio da legalidade (art. 5º, XXXIX, da CF/88).

Dessa maneira, não se mostra possível internalizar a tipificação do crime contra a humanidade trazida pelo Estatuto de Roma, mesmo se cuidando de Tratado internalizado por meio do Decreto n. 4.388, porquanto não há lei em sentido formal tipificando referida conduta. STJ. 3ª Seção.REsp 1.798.903-RJ, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 25/09/2019 (Info 659).

Informativo

Em que consistem os chamados crimes contra a humanidade ou “crimes de lesa-humanidade”?

A definição dos crimes de lesa-humanidade, também chamados de crimes contra a humanidade, pode ser encontrada no Estatuto de Roma, promulgado no Brasil por força do Decreto nº 4.388/2002:

Artigo 7º Crimes contra a Humanidade 1. Para os efeitos do presente Estatuto, entende-se por “crime contra a humanidade”, qualquer um dos atos seguintes, quando cometido no quadro de um ataque, generalizado ou sistemático, contra qualquer população civil, havendo conhecimento desse ataque:

a) Homicídio;
b) Extermínio;
c) Escravidão;
d) Deportação ou transferência forçada de uma população;
e) Prisão ou outra forma de privação da liberdade física grave, em violação das normas fundamentais de direito internacional;
f) Tortura;
g) Agressão sexual, escravatura sexual, prostituição forçada, gravidez forçada, esterilização forçada ou qualquer outra forma de violência no campo sexual de gravidade comparável;
h) Perseguição de um grupo ou coletividade que possa ser identificado, por motivos políticos, raciais, nacionais, étnicos, culturais, religiosos ou de gênero, tal como definido no parágrafo 3º, ou em função de outros critérios universalmente reconhecidos como inaceitáveis no direito internacional, relacionados com qualquer ato referido neste parágrafo ou com qualquer crime da competência do Tribunal;
i) Desaparecimento forçado de pessoas;
j) Crime de apartheid;
k) Outros atos desumanos de caráter semelhante, que causem intencionalmente grande sofrimento, ou afetem gravemente a integridade física ou a saúde física ou mental.

Vale ressaltar que o Estatuto de Roma foi adotado em 17/7/1998, porém apenas passou a vigorar em 1º/7/2002, quando conseguiu o quórum de 60 países ratificando a convenção, sendo internalizado no Brasil por meio do Decreto nº 4.388, de 25/9/2002

Crimes de lesa-humanidade e imprescritibilidade

O direito costumeiro internacional define como crimes de lesa-humanidade condutas como desaparecimentos forçados, execuções sumárias de pessoas (“execuções extrajudiciais”), tortura e outros delitos cometidos no contexto de ataque sistemático ou generalizado à população civil.

Os delitos de lesa-humanidade devem ser submetidos à jurisdição universal e declarados imprescritíveis, conforme prevê a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, adotada pela Resolução 2391 da ONU.

Por força desta Resolução, nos termos de seu artigo 3º, os Estados Membros obrigam-se a adotar todas as medidas internas, de ordem legislativa ou outra, que sejam necessárias a fim de permitir a extradição. Esta Resolução 2391 não foi ratificada pelo Estado brasileiro. Apesar disso, a Corte Interamericana de Direitos Humanos já decidiu, em diversas oportunidades, que os Estados integrantes do sistema interamericano de direitos humanos (dentre eles, o Brasil) deverão reconhecer a imprescritibilidade dos crimes de lesa-humanidade e punir os suspeitos de sua prática. Nesse sentido: Caso Barrios Altos versus Peru, mérito, sentença de 14 de março de 2001, par. 41; Caso La Cantuta, mérito, sentença de 29 de novembro de 2006, par. 152; e Caso Do Massacre de Las Dos Erres, sentença de 24 de novembro de 2009, par. 129.

Crimes de lesa-humanidade não são imprescritíveis no Brasil

A jurisprudência do STF e do STJ entende que os crimes contra a humanidade não são imprescritíveis no Brasil. Podem ser apontadas duas razões para isso:

1) o Brasil não subscreveu a Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade, nem aderiu a ela. Isso significa que a cláusula de imprescritibilidade penal que resulta dessa Convenção das Nações Unidas não se aplica, não obriga nem vincula, juridicamente, o Brasil, quer em sua esfera doméstica, quer no plano internacional. Não se pode querer aplicar, no plano doméstico, uma convenção internacional de que o Brasil nem sequer é parte, invocando-a como fonte de direito penal, o que se mostra incompatível com a CF/88.
2) apenas a lei interna (lei brasileira) pode dispor sobre prescritibilidade ou imprescritibilidade de crimes no Brasil. Sendo o tema prescrição relacionado com o direito penal, deve-se concluir que ele está submetido ao princípio constitucional da reserva absoluta de lei formal, exigindo lei em sentido formal. Em matéria penal prevalece, sempre, o postulado da reserva constitucional de lei em sentido formal. O Brasil não é, portanto, signatário de tratado internacional que determine a imprescritibilidade de crimes contra a humanidade. No entanto, ainda que houvesse norma de direito internacional de caráter cogente que estabelecesse a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, tal norma não encontraria aplicabilidade em nosso país. Isso porque, para que aqui pudesse valer, seria necessário que houvesse uma lei interna em sentido formal.

Não há lei, no Brasil, que tipifique os crimes contra a humanidade

No Brasil ainda não há lei que tipifique os crimes contra a humanidade.

Existe um projeto de lei em tramitação (Projeto de Lei nº 4.038/2008), que “dispõe sobre o crime de genocídio, define os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes contra a administração da justiça do Tribunal Penal Internacional, institui normas processuais específicas, dispõe sobre a cooperação com o Tribunal Penal Internacional, e dá outras providências”.

Nesse contexto, diante da ausência de lei interna tipificando os crimes contra a humanidade, não é possível utilizar tipo penal descrito em tratado internacional para tipificar condutas internamente, sob pena de se violar o princípio da legalidade, segundo o qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal” (art. 5º, XXXIX, da CF/88).

Dessa maneira, não se mostra possível internalizar a tipificação do crime contra a humanidade trazida pelo Estatuto de Roma, mesmo se cuidando de Tratado internalizado por meio do Decreto nº 4.388, porquanto não há lei em sentido formal tipificando referida conduta.

Além disso, o Estatuto de Roma somente passou a vigorar no Brasil em 25/9/2002, de forma que não pode ser aplicado retroativamente para fatos ocorridos em 1981 em prejuízo ao réu, tendo em vista o princípio constitucional da irretroatividade, previsto no art. 5º, XL, da Constituição Federal, segundo o qual “a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu”.

Assim, não é possível utilizar a tipificação de crime contra a humanidade trazida no Estatuto de Roma na presente hipótese, sob pena de ofensa aos princípios constitucionais da legalidade e da irretroatividade.

A Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade afirma que os delitos de lesa-humanidade devem ser declarados imprescritíveis. Esta Convenção foi adotada pela Resolução nº 2.391 da Assembleia Geral da ONU, em 26/11/1968, e entrou em vigor em 11/11/1970. Contudo, ela não foi ratificada pelo Brasil. Seria possível aplicar essa Convenção no Brasil mesmo sem ratificação, por se tratar de norma jus cogens (normas imperativas de direito internacional, amplamente aceitas pelo país e insuscetíveis de qualquer derrogação)?

NÃO.

O art. 107, IV, do Código Penal prevê que a punibilidade do agente é extinta pela ocorrência da prescrição:

Art. 107. Extingue-se a punibilidade: (…) IV - pela prescrição, decadência ou perempção;

A regra do direito brasileiro que prevê a existência da prescrição (art. 107, IV, do CP) não pode ser afastada sem a existência de lei em sentido formal.

Somente lei interna (e não convenção internacional, muito menos aquela sequer subscrita pelo Brasil) pode qualificar-se, constitucionalmente, como a única fonte formal direta, legitimadora da regulação normativa concernente à prescritibilidade ou à imprescritibilidade da pretensão estatal de punir, ressalvadas, por óbvio, cláusulas constitucionais em sentido diverso, como aquelas inscritas nos incisos XLII e XLIV do art. 5º da CF/88.

Aplicação da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade não pode violar princípios constitucionais

Ainda que se admita o jus cogens, na contramão do que decidido pelo Supremo Tribunal Federal na Extradição n. 1.362/DF, o controle de convencionalidade exercido pelo STJ, com a finalidade de aferir se a legislação infraconstitucional está em dissonância com o disposto no tratado internacional sobre direitos humanos, deve se harmonizar com os princípios e garantias constitucionais.

A admissão da Convenção sobre a Imprescritibilidade dos Crimes de Guerra e dos Crimes contra a Humanidade como jus cogens não pode violar princípios constitucionais, devendo, portanto, se harmonizar com o regramento pátrio. Referida conclusão não revela desatenção aos Direitos Humanos, mas antes observância às normas máximas do nosso ordenamento jurídico, consagradas como princípios constitucionais, que visam igualmente resguardar a dignidade da pessoa humana, finalidade principal dos Direitos Humanos. Nesse contexto, em observância aos princípios constitucionais penais, não é possível tipificar uma conduta praticada no Brasil como crime contra humanidade, sem prévia lei que o defina, nem é possível retirar a eficácia das normas que disciplinam a prescrição, sob pena de se violar os princípios da legalidade e da irretroatividade, tão caros ao direito penal.

O não reconhecimento da imprescritibilidade dos crimes narrados na denúncia não diminui o compromisso do Brasil com os Direitos Humanos. Com efeito, a punição dos denunciados, quase 40 anos após os fatos, não restabelece os direitos humanos supostamente violados, além de violar outros direitos fundamentais, de igual magnitude: segurança jurídica, coisa julgada material, legalidade, irretroatividade, etc.